quarta-feira, 31 de outubro de 2007

plus ça change

"O amor nos tira o sono, nos tira do sério,
tira o tapete debaixo dos nossos pés,
faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas
aparentemente superados, mas também com insuspeitada
audácia e generosidade. E como habitualmente tem um fim
- que é dor - complica a vida.
Por outro lado, é um maravilhoso ladrão da nossa arrogância.
Quem nos quiser amar agora terá de vir com calma,
terá de vir com jeito.
Somos um território mais difícil de invadir,
porque levantamos muros,
inseguros de nossas forças disfarçamos a fragilidade
com altas torres e ares imponentes.
A maturidade me permite olhar com menos ilusões,
aceitar com menos sofrimento,
entender com mais tranqüilidade,
querer com mais doçura.
Às vezes é preciso recolher-se".

(Lya Luft)

Filme: Plus ça change. Direção: Christopher Tuckfield, Austrália.

o livro secreto

Fragmentos de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, livro que amo e que será a próxima leitura desta que vos fala:

"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito - por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia."

"...existe uma receita, a norma de um caminho certo, estreito, de cada pessoa viver - e essa planta cada um tem - mas a gente mesmo, no comum não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas esse norteado tem. Tem que ter. Se não a vida de todos fica sendo sempre o confuso dessa doidera que é."

"Na própria precisão com que outras passagens lembradas se oferecem, de entre impressões confusas, talvez se agite a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo menos, retardar que perscutemos qualquer verdade".

"O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior."

Filme: O Livro Secreto. Direção: Vlado Cvetanovski. França/ Macedônia, 2006.

domingo, 28 de outubro de 2007

um dia depois do outro

O fim de semana foi ótimo, obrigada. E olha que ele ainda não terminou. São apenas quatro da tarde de um domingo ensolarado e azul e ainda há coisas boas por vir antes de deitar a cabeça no travesseiro.

E, no fim das contas, me pego pensando que a gente não deve esperar muito da vida, não. Não precisamos muito mais que isso aqui:

À sombra de um jatobá
Toquinho

Raios de sol na varanda,
Verde cobrindo o jardim.
Poder sentir a vida espreguiçar
Com o cheiro da madrugada,
Dama-da-noite, jasmim.
Olhar no céu estrelas pra contar.

Ter meus amigos comigo,
Quem amo me amando, sim.
Longe do amor de quem nos finge amar.
Ver na manhã de um domingo
Meu filho sorrir pra mim.
Depois dormir à sombra de um jatobá.

Poucas coisas valem a pena,
O importante é ter prazer.
Longe de mim a inveja
E a maldade escondidas na vida.
Hoje estamos nós em cena
E não há tempo a perder,
Pois tudo acaba mesmo sempre em despedida.

Filme: Um Dia depois do Outro, Direção Amos Gitai, Israel, 1998.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

coisas da vida, meu amor

Por que tem vezes que a vida real se parece demais com a poesia - ou será o contrário?

Los formales y el frío

Quién iba a prever que el amor ese informal
se dedicara a ellos tan formales

mientras almorzaban por primera vez
ella muy lenta y él no tanto
y hablaban con sospechosa objetividad
de grandes temas en dos volúmenes
su sonrisa la de ella
era como un augurio o una fábula
su mirada la de él tomaba nota
de cómo eran sus ojos los de ella
pero sus palabras las de él
no se enteraban de esa dulce encuesta

como siempre o como casi siempre
la política condujo a la cultura
así que por la noche concurrieron al teatro
sin tocarse una uña o un ojal
ni siquiera una hebilla o una manga
y como a la salida hacía bastante frío
y ella no tenía medias
sólo sandalias por las que asomaban
unos dedos muy blancos e indefensos
fue preciso meterse en un boliche

y ya que el mozo demoraba tanto
ellos optaron por la confidencia
extra seca y sin hielo por favor

cuando llegaron a su casa la de ella
ya el frío estaba en sus labios los de él
de modo que ella fábula y augurio
le dio refugio y café instantáneos

una hora apenas de biografía y nostalgias
hasta que al fin sobrevino un silencio
como se sabe en estos casos es bravo
decir algo que realmente no sobre

él probó sólo falta que me quede a dormir
y ella probó por qué no te quedás
y él no me lo digas dos veces
y ella bueno por qué no te quedás

de manera que él se quedó en principio
a besar sin usura sus pies fríos los de ella
después ella besó sus labios los de él
que a esa altura ya no estaban tan fríos
y sucesivamente así
mientras los grandes temas
dormían el sueño que ellos no durmieron.

Mario Benedetti

Filme: Coisas da vida, meu amor. Direção: Yee Tung-Shing. Hong Kong, 1993.

só por hoje

E então eu conheci a poesia do uruguaio Mario Benedetti. Não me pergunte como; na maioria das vezes o poema cai na minha mão como um presente. Leio um trecho, uma frase, e se me agrada vou em busca de mais textos do mesmo autor. Foi assim com Mario. Li, conheci, gostei, pesquisei e gostei mais ainda.

E como hoje é um daqueles dias que, meio pelo cansaço, meio pelas atribulações do trabalho e otras coisitas más, você sente que está tudo meio nublado, lanço esse aqui, pra começar:

Alegría de la tristeza:

En las viejas telarañas de la tristeza
suelen caer las moscas de sartre
pero nunca las avispas de aristófanes

uno puede entristecerse
por muchas razones y sinrazones
y la mayoría de las veces sin motivo aparente
sólo porque el corazón se achica un poco
no por cobardía sino por piedad

la tristeza puede hacerse presente
con palabras claves o silencios porfiados
de todas maneras va a llegar
y hay que aprontarse a recibirla

la tristeza sobreviene a veces
ante el hambre millonaria del mundo
o frente al pozo de alma de los desalmados

el dolor por el dolor ajeno
es una constancia de estar vivo

después de todo / pese a todo
hay una alegría extraña / desbloqueada
en saber que aún podemos estar tristes

Mario Benedetti

Filme: Só por hoje. Direção: Roberto Santucci. Brasil, 2007.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

um certo olhar

Eu sou apaixonada por boas histórias. Li essa abaixo num blog muito bacana, mas cujo autor infelizmente parou de escrever em março de 2007.

Compartilho:

"Não gosto de literatura, odeio escrever, nunca vou ao cinema -- não sei como tudo isso se juntou. No começo de 82 fui fazer uns biscates em Buenos Aires e li nos classificados que procuravam alguém para auxiliar um velho. Achei gozado o que pediam no anúncio: "Dá-se preferência a quem não goste de filmes." Fui ver. Parece que em Buenos Aires são poucos os que não apreciam perder tempo no escuro do cinema. Cheguei lá; a mulher dele -- que no começo pensei ser a secretária -- , uma japonesa, me recebeu. Fui levado à sala dele. Idoso mesmo, uns oitenta e tantos, por aí. E cego. Achei gozado um cego numa sala cheia de livros. A japonesa confirmou meu desapego pelo cinema ("Desprezo", insisti) e me explicou: eu iria receber para ler livros técnicos sobre os fundamentos do cinema -- enquadramento, planos, fotografia. Depois de aprender o necessário, iria acompanhar o velho a uma antiga sala de cinema no bairro de Palermo. Minha tarefa era, portanto, ir descrevendo as fitas para ele, utilizando os jargões que guardaria do aprendizado. No começo foi complicado, mas logo me acostumei. "Travelling até uma casa amarela", eu dizia. "Corta para plano médio de uma moça de olhos grandes, grandes e cor de caramelo fervido. Fade." E o velho de olhar grudado na tela, como se enxergasse. Pareciam até brilhar, aqueles globos brancos. Lembro que o único atrito aconteceu na vez em que acabei me entusiasmando com uma cena e fiz sem querer um comentário sobre o cenário -- então o velho me cortou, a voz mais rouca do que de costume: "Quero seus olhos. Não sua opinião." No mais, tudo correu na mais perfeita normalidade. Depois o estado de saúde dele foi piorando, as sessões acabaram e em quatro ou cinco semanas eu deixava Buenos Aires, com um bom dinheiro no bolso. Meses depois recebi um bilhete da japonesa, dizendo que ele havia morrido e deixado uma carta de agradecimento para mim -- que seguia em anexo. Mas era uma longa carta, e eu já disse que não tenho paciência para isso de literatura. Joguei a carta fora sem ler e segui minha vida."

É difícil imaginar alguém que não goste de cinema, mas de qualquer forma eu achei esta história fascinante. Rende até filme. Argentino, claro. ;-)

Apesar da vida curta e do abandono precoce, tem mais aqui:
http://blogdebolso.aomirante.com/

Filme: Um certo olhar, Inglaterra e Canadá, 2006. Direção: Marc Evans.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

um outro tempo, um outro lugar

Chico Buarque teve muitos tempos difíceis no começo da carreira. Para quem não sabe ou mesmo pra quem quer relembrar, a história recente do nosso Brasil foi marcada pela ditadura militar, AI-5, torturas, nenhuma liberdade de expressão, torturas e mais torturas. Nesse cenário bem nebuloso e sombrio, o muso Chico Buarque, ainda rapazinho, recém-casado e com Marieta grávida da primeira filha, foi aconselhado pelo mestre Vinícius de Moraes a dar um tempo fora do Brasil, e foi o que fez em janeiro de 1969. Bem, essa história é relativamente conhecida. O mais doido disso tudo é que, já na Itália, Chico viu que o sonho de uma carreira internacional não seria tão fácil quanto ele pensara. Os shows foram ficando escassos e era preciso trabalhar. Desistir? Voltar pro Brasil? Não tão cedo. Foi então que ele se uniu ao amigo Garrincha, que também passava uma temporada lá. E na maior humildade do mundo...


Ele conta a história numa entrevista ao jornal Estado de S. Paulo:

(...) "Nós estávamos um pouco desamparados em Roma. Eu não estava trabalhando muito, estava vivendo um pouco de expectativa de voltar para o Brasil, e Garrincha estava lá fazendo alguns bicos como jogador, participava de algumas peladas porque ele gostava e ao mesmo tempo porque ele precisava, era um dinheirinho que entrava. Ele estava duro e eu também estava duro, então foi uma convivência muito especial, diferente de qualquer outra que possa ter. Ele era um sucesso formidável, íamos em lugares com arquibancadas improvisadas e tal, porque os jogadores não eram exatamente o Jordan e outros marcadores que teve, eram times amadores. Fazia umas três a quatro jogadas e saía aclamado de campo. Era impressionante a popularidade do Garrincha, lembra Chico, o motorista orgulhoso. A gente saía de carro e eu levava ele pra essas peladas. Era impressionante como, sete anos depois da Copa de 62, todo mundo ficava atrás: Garrincha! Garrincha! E eu era o chofer dele. (...) Eu via nele um sujeito muito sensível, a gente falava muito de música. Fiquei muito impressionado que Garrincha pudesse gostar de João Gilberto. E ele adorava João Gilberto. Nós falávamos de tudo, não era só de futebol. E falávamos tomando cerveja, tomando garapa. Ele bebia, e eu não posso falar nada porque eu bebia junto. Mas ele estava muito bem de espírito, nunca vi o Garrincha bêbado. Bebia bastante mas estava sempre alegre, não tinha aquela coisa depressiva do alcoolismo."


Sim, Chico foi o motorista do Garrincha. Não sei precisar por quanto tempo. Mas ele continuou compondo, claro. Foram seis discos neste período de 1968 a 1970. Só pra ter uma idéia, é dessa época "Ela desatinou", "Olê, Olá", "Apesar de você" e tantas outras. Esta última virou um dos hinos contra a opressão.

Podia até faltar luxo e fartura à mesa, mas inspiração, esta estava sempre com ele. Muso é muso mesmo, não tem jeito. Faz coisas belas até nos momentos mais críticos.

Filme: Um outro tempo, um outro lugar. Direção: Michael Radford. Grã-Bretanha, 1982.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

amor pulsa mais rápido que sangue

"Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe.

Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um minuto de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

[Miguel Esteves Cardoso]

Li o texto acima em uma comunidade de poesia que participo. Sim, há vida inteligente no orkut. Bem, fiquei um pouco confusa com algumas afirmações, triste com outras, mas o fato é que o texto fez pensar, rendeu devaneios para a semana inteira, e isso é bom. E lembrei de um excerto de Rubem Alves que gosto muito:

"Compreendi que a vida não é uma sonata que, para realizar sua beleza tem de ser tocada até o fim. Dei-me conta, ao contrário, de que a vida é um álbum de minissonatas. Cada momento de beleza vivido e amado, por efêmero que seja, é uma experiência completa que está destinada à eternidade. Um único momento de beleza e de amor justifica a vida inteira."

[Rubem Alves]

Filme: Amor pulsa mais rápido que sangue. Diretor: Hideki Kitagawa. Japão, 2007.

todas as belas promessas

"Sei que se eu abandonar o que foi uma vida toda organizada pela esperança, sei que abandonar tudo isso - em prol dessa coisa mais ampla que é estar vivo - abandonar tudo isso dói como separar-se de um filho ainda não nascido, só prometido, e isso machuca. Mas sei que ao mesmo tempo quero e não quero mais me conter. É como na agonia da morte: alguma coisa na morte quer se libertar e tem ao mesmo tempo medo de largar a segurança do corpo. Sei que é perigoso falar na falta de esperança, mas ouve - está havendo em mim uma alquimia profunda, e foi no fogo do inferno que ela se forjou. E isso me dá o direito maior: o de errar. "

Clarice Lispector


Filme: Todas as belas promessas. Diretor: Jean Paul Civeyrac, França, 2003.

domingo, 21 de outubro de 2007

memória para uso diário

"Um refúgio? Uma barriga? Um abrigo onde se esconder quando estiver se afogando na chuva, ou sendo quebrado pelo frio, ou sendo revirado pelo vento? Temos um esplêndido passado pela frente? Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um ponto de partida."

"A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo."

Eduardo Galeano


Para quem não conhece o cara, aí vai:

Eduardo Hughes Galeano (Montevidéu, 3 de setembro de 1940) é um jornalista e escritor uruguaio. Suas obras já foram traduzidas em diversas línguas. Costuma escrever seus livros no formato de pequenas histórias que contempla desde assuntos políticos relevantes na história da América Latina até assuntos simples, como o cotidiano e o futebol. Galeano é comparado a John Dos Passos e Gabriel García Márquez. Uma de suas obras de maior relevância política e importância é "As Veias Abertas da América Latina".

Ahh, o filme:

Memória para uso diário. Brasil, 2007. Direção: Beth Formaggini.

sábado, 20 de outubro de 2007

desejo e reparação

Tarde

É isto que me cabe.
Dentro disto é necessário caber
até que tudo acabe.

Mas há nisso uma espécie de prazer,
uma volúpia esguia,
impalpável, difícil de dizer,

feito uma melodia
que se escutou e depois se esqueceu,
porém retorna um dia,

inconfundível: sim, este sou eu,
e eis aqui o palácio
que construí, e agora é todo meu:

um só andar, um passo
de frente e um de fundo. É um bom começo.

Paulo Henriques Britto

(do poema Balanços)

Filme: Desejo e Reparação - Inglaterra, 2007. Diretor Joe Wright.

ação entre amigos*

Tenho percebido uma coisa muito boa que está acontecendo há algum tempo, mas com certeza se solidificou neste ano: eu pertenço a alguns grupos de amigos, e sinto que "faço parte" de todos eles. Não apenas estou lá presente como sou convidada, sou bem-vinda, solicitada, enfim, sou amada. Isso não é nem um pouco banal para alguém que nunca se sentiu totalmente aceita em grupo algum, sempre precisou cavar um espacinho para fazer amigos e ser mais uma na turma. E de repente, no alto dos quase 30, eu sou bem feliz por estar em 6 grupinhos muito especiais, que reúnem pessoas ainda mais especiais, cada um a sua maneira. Os 6 grupos não conversam em si, o que é ainda mais legal porque eu vou acumulando muita gente querida nesta caminhada.
A todos os seres que fazem parte disso (eles certamente sabem quem são), OBRIGADA.

* A partir de hoje, os posts terão títulos de filmes da Mostra Internacional de Cinema, que começou hoje em São Paulo. Até quando eu quiser e achar que vale a pena, filmes novos e antigos estrelarão os posts. A única regra que não pode ser quebrada: tem que ter passado na Mostra de Cinema. Pra começar, Ação entre amigos, filme brasileiro do Beto Brant, de 1998.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

fabuloso destino

Diálogo extraído de "O Fabuloso Destino de Amèlie Poulain", que certamente ganha disparado na lista dos Top10 dos filmes da minha vida:

Amèlie - Sabe a garota do copo de água?
Homem de Vidro - Sei.
Amèlie - Se parece distante, talvez seja porque está pensando em alguém.
Homem de Vidro - Em alguém do quadro?
Amèlie - Não, um garoto com quem cruzou em algum lugar, e sentiu que eram parecidos.
Homem de Vidro - Em outros termos, prefere imaginar uma relação com alguém ausente a criar laços com os que estão presentes.
Amèlie - Ao contrário, talvez tente arrumar a bagunça da vida dos outros.
Homem de Vidro - E ela? E a bagunça na vida dela?

É, faz pensar mesmo. Não apenas este diálogo, mas o filme todo. A gente pára e pensa nas nossas relações, nas coisas e pessoas que consideramos importantes, na maneira como levamos a vida. Nos pequenos prazeres que fazem cada ser diferente, único e especial. E em todas as sutilezas da vida, porque pra mim esse é filme é feito basicamente disso. Momentos, pessoas, sentimentos e sensações que só você tem, porque viveu, presenciou, fez parte da "cena". E eu sei que um dia ainda andarei por aquelas bandas de Montmartre, insuportavelmente feliz, se possível na primavera, se possível com um "Nino" a tiracolo. Só questão de tempo. ;-)

ah, o amor

Delícia de poema... adorei!

Vamos brincar, amor? Vamos jogar peteca
Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação?
Vamos sofrer, amor? Males da alma, perigos
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo
Vamos, amor? Vamos tomar porre de absinto
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos
Fingir que hoje é domingo, vamos ver
O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão?
Vamos, amor, tomar thé na Cavé com madame Sevignée
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. S. do Parto?
Vamos, amor? Vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol
Vamos, amor?
Porque excessivamente grave é a Vida.

Vinícius de Moraes

Poema copiadinho, assim de leve, do blog da Dri. A menina manda tão bem que há algumas coisas que fica impossível não tomar pra si. Valeu, Dri!

Este poema me fez lembrar Ivan Lins cantando:

"Lembra de mim
Nós dois na rua provocando os casais
Amando mais do que o amor é capaz
Perto daqui
Há tempos atrás"

domingo, 14 de outubro de 2007

venter auribus caret

"O Nunca Mais não é verdade.
Há ilusões e assomos, há repentes
De perpetuar a duração.
O Nunca Mais é só meia-verdade
Como se visses a ave entre a folhagem
E ao mesmo tempo não."

Hilda Hilst

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

a seguir, cenas inéditas.

Em breve, nas telas do nosso Brasil varonil, 2 filminhos que têm motivos de sobra para eu sair da minha corrida rotina e ir ao cinema...

EBA 1
Aos poucos o elenco de Sex And The City, o filme, vai se formando. Agora foi a ganhadora do Oscar de Atriz Coadjuvante deste ano, Jennifer Hudson, que confirmou sua participação na adaptação do seriado. Jennifer fará a assistente de Carrie Broadshaw, personagem de Sarah Jessica Parker na história. Estão confirmadas, ainda, no elenco, as protagonistas Kim Cattrall, Cynthia Nixon e a bela Kristin Davis. Chris Noth também vai reprisar seu papel de Mr. Big. As filmagens começam na semana que vem.

EBA 2
Pedro Almodóvar vai filmar novamente com sua principal atriz, Penélope Cruz, depois de Volver (2006), Tudo Sobre Minha Mãe (1999) e Carne Trêmula (1997). A produção começa a ser rodada apenas no ano que vem, depois que Penélope terminar seu filme com Woody Allen (que está sendo rodado em Barcelona) e sua participação no musical Nine, do norte-americano Rob Marshall (de Chicago).

Li no blog de cinema do jornal A Tribuna: http://www.cineblogat.globolog.com.br/?opr=455

Amo muito tudo isso: as meninas do Sex and the City com os dilemas sentimentais e profissionais (que, pensando bem, são mais universais do que parecem) e a deliciosa mistura de Almodóvar com Penélope... Quem viu os últimos filmes dele sabe o tempero e o talento que a moça tem. É fato, ela está incrivelmente melhor em Volver. O que só me deixa com mais vontade ainda de ver este novo filme... pena que as filmagens começam só ano que vem, ou seja, senta e espera que o filme mesmo deve ficar pronto lá pra 2009...

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Soneto puro

Fique o amor onde está; seu movimento
nas equações marítimas se inspire
para que, feito o mar, não se retire
das verdes áreas de seu vão lamento.

Seja o amor como a vaga ao vago intento
de ser colhida em mãos; nela se mire
e, fiel ao seu fulcro, não admire
as enganosas rotações do vento.

Como o centro de tudo, não se afaste
da razão de si mesmo, e se contente
em luzir para o lume que o ensolara.

Seja o amor como o tempo — não se gaste
e, se gasto, renasça, noite clara
que acolhe a treva, e é clara novamente.

Lêdo Ivo In Antologia Poética

pensamiento

Neste momento, Marina de la Riva -poderosa, como sempre- deve estar entrando no auditório da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, para mais um show da programação do Corredor Literário da Paulista. Mesmo teatro onde assisti, no último sábado, à gravação do programa "No divã do Gikovate", programa de rádio do famoso terapeuta e psicanalista e que é gravado ao vivo uma vez ao mês. Muito bons - o Flavio, o programa e o teatro, que não conhecia.

Boas vibrações pra você, menina. Que seja tão bom quanto aquele lá. Perfeito, como deve ser. Todos afinadíssimos e felizes. Desta vez não vai dar. Até pensei em ir, but... it´s too heavy.

Marina de la Riva é brasileira, de ascendência cubana. Linda, talentosa e com muita presença de palco. E canta, viu. Como canta. Sambas, boleros e mais.

Conheça e se apaixone: http://www.marinadelariva.com/

palavras, apenas.

Tu sabes que as palavras não estão em nenhum lugar
embora possam vir de uma região subterrânea
ou da parte mais alta da cabeça como ondas
que às vezes são de areia ou de cal mas outras de
[ um sangue negro ou verde

Quer escrevas quer não escrevas
estás sempre à beira de
uma zona inexplorável
mas que uma palavra a única e que tu não
[ esperavas e esperavas
faz estremecer como a possibilidade iminente
de uma actualidade de palavra viva
O teu corpo estremece antes e depois
porque o inviolável transgride os limites
da precária segurança desse frágil suporte
que poderia estalar e desagregar-te
Mas perante a palavra que vai à tua frente
tu sentes o glorioso frémito
da queda na brancura ou num deserto fulminante

Antonio Ramos Rosa, IN A Imobilidade Fulminante (1998)

maktub. ou acaso. ou nada disso.

Cada vez mais fica a certeza límpida e clara de que nada, nada nessa nossa vidinha - feita de momentos breves, fugazes e belos - acontece por acaso.

Mas aí de repente eu li isso aqui e fiquei bem confusa... quem puder me ajudar a entender, por favor, o faça. Mas faça rápido, sim!? rs

"Só o acaso pode ser interpretado como uma mensagem. Aquilo que acontece por necessidade, aquilo que é esperado e que se repete todos os dias, não é senão uma coisa muda. Somente o acaso tem voz. Tentamos interpretar o acaso como as ciganas lêem no fundo de uma xícara o desenho deixado pela borra de café! O acaso tem suas mágicas, a necessidade não. Para que algo seja inesquecível, é preciso que os acasos se juntem desde o primeiro instante, como os passarinhos sobre os ombros de São Francisco de Assis."

Milan Kundera

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

capisce?

(...) "A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo): “Caminante, no hay camino. Pero el camino se hace al andar".

Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem."

Caio Fernando Abreu, IN Carta ao Zézim

sábado, 6 de outubro de 2007

sobre a vida...

Pode parecer piegas, pode parecer qualquer coisa de bom ou mau, mas é fato: eu amo a vida. Amo ser quem sou, amo meus amigos, meu trabalho, minha família. Enfim, todo o pacote agrada. Podia ser melhor? Sim, claro, sempre queremos mais. E este "impulso vital" é necessário e muito bem-vindo. É ele que faz a gente continuar na batalha, seguir em frente e lembrar do Gonzaguinha: "É a vida, é bonita, é bonita e é bonita".

Lembro também dessas figuras aqui:

"Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só o fervor mas uma dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas."
[Lygia Fagundes Telles]

“Vim para amar e ser desamado, vim para experimentar dúvidas e contradições. São as contingências do existir. Que importa o mundo e suas ilusões defuntas? A vida, quero vivê-la.”
[Murilo Mendes]

"A vida é maravilhosa, mesmo quando dolorida. Eu gostaria que na correria da época atual a gente pudesse se permitir, criar, uma pequena ilha de contemplação, de autocontemplação, de onde se pudesse ver melhor todas as coisas: com mais generosidade, mais otimismo, mais respeito, mais silêncio, mais prazer. Mais senso da própria dignidade, não importando idade, dinheiro, cor, posição, crença. Não importando nada".
[Lya Luft]

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

eventos

Ou eu estou muito por fora, ou boas iniciativas culturais como o Corredor Literário não são divulgadas como deveriam.

Acabo de saber que esta semana inteira foi de eventos em 6 espaços, todos na Av. Paulista. Eu sou relativamente bem informada, moro em Sampa, perto dos locais, e não fiquei sabendo de nada. Caraca. Ódio master. Perdi palestra do Daniel Piza, perdi debate sobre a obra do Almódovar e Marina Colasanti - e a relação de ambos com as histórias de contos de fada, perdi um monte de coisa legal. Ah, magoei.

Tudo bem, o evento vai até 14/10. Mas nesta mesma semana que inclui o feriado, estará acontecendo em Santos a Fenalba - 6ª Feira Nacional do Livro da Baixada Santista, também com ciclo de palestras e debates.

Isso é sacanagem. Da grossa. Porque 2 eventos literários na mesma semana e na mesma região, me diz? Alguém já inventou uma fórmula pra estar em 2 lugares ao mesmo tempo? :-/

Para quem se interessar...

Corredor Literário: http://www.corredorliterario.com.br/
Fenalba: http://www.fenalba.com.br/

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

paixão antiga...

... sempre mexe com a gente. Calma. Falo de cinema, arte que amo, assim como música e literatura. Já fui mais cinéfila, hoje falta tempo, grana, cia, um monte de coisa. Não, eu não gosto de enfrentar a sala escura sozinha. Até vou, mas odeio. Gosto de comentar o filme, de dividir a pipoca e o guaraná, de ter com quem trocar uma idéia antes, durante e após o evento. Claro, continuo gostando muito de cinema, principalmente o europeu, argentino e oriental. Brasileiro também, às vezes. Americano, alguns. E vou sempre que posso.

Os últimos vistos foram:

O GRANDE CHEFE The Boss of It All. Dinamarca, 2006. Direção: Lars von Trier.
Com: Jens lbinus, Peter Gantzler e Fridrik Thor Fridriksson. 99 min. 16 anos. Dono de uma empresa de tecnologia quer vender a companhia, mas se depara com dificuldades ao lembrar que criou um chefe fictício para respaldá-lo nas decisões. Para resolver o impasse, ele contrata um ator para se passar pelo chefe.

A VIDA SECRETA DAS PALAVRAS La Vida Secreta de las Palabras. Espanha, 2005.
Direção: Isabel Coixet. Com: Sarah Polley, Tim Robbins e Javier Cámara. 115 min. 14 anos. Durante as férias num pequeno povoado, enfermeira introvertida cuida de um homem que sofreu graves queimaduras numa plataforma petrolífera.

Ambos muito bons. O primeiro é bem hilário, o segundo é triste de doer. Não é o momento de encarnar Merten ou Rubens Ewald agora, estou com pressa e corro um sério risco de falar besteira. Mas, se a minha humilde opinião servir pra alguma coisa, a dica é: veja os dois. E depois me conte o que achou. Ambos ainda em exibição em SP.

E está chegando a Mostra Internacional de Cinema de SP. Começa dia 19 de outubro e vai até 01 de novembro. O povo enlouquecido atrás de ingressos, as filas homéricas no Conjunto Nacional, os tipos mais bizarros nos cinemas. Eu tenho consciência de que não verei nem a metade dos mais bacanas. Parei de desejar o impossível e sofrer com isso. Lição que aprendi com a Ju, amiguinha cinéfila e cia para os 2 filmes acima. Quero ver uns 2 ou 3. Já ficarei bem satisfeita com eles. E com a cia que vier, e com a pipoca gostosa, e com a pizza que a gente come depois do cine. Acho que não é pedir muito, né?!

para ler, escutar e gostar

Você já leu a Revista Piauí? Eu nunca li a da banca, mas a da internet conheci outro dia e gostei bastante. Tá, eu não li muita coisa, mas me apaixonei por uma seção com poesias em áudio do Eucanaã Ferraz.

Para ouvir, acesse: http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=363

As duas que mais gostei:

VINHETA
Ame-se o que é, como nós, efêmero. Todo o universo podia chamar-se: gérbera. Tudo, como a flor, pulsa e arde e apodrece. Sei, repito ensinamento já sabido e lições não dizem mais que margaridas e junquilhos. Lições, há quem diga, são inúteis, por mais belas. Melhor, porém, acrescento, se azuis, vermelhas, amarelas.

INTERVALO
É o que lhe digo: a medida. Quantos de nós entre nós se tantos os vazios a preencher entre querermos e a distância? A delicadeza dá dois passos. A vontade avança. A dúvida recua. Quantos de você entre você e Camus, entre você e a casa, entre você e quase, entre você e o nó que lentamente vai desatando entre você e nós? Há muitos entre nós: que somos, que não somos, que seríamos, entre a sua voz e ouvi-la entre a vertigem de tocar, por sobre o Saara, as mãos e o jardim que nelas se abre, agora que não há senão um sim e um sim, e temos sede, e rimos alto entre livros, arrebatamentos, amendoeiras e a impressão de que, sem deixar traço, todos desapareceram.

Poesias belíssimas. E em áudio soam ainda melhores.

Eucanaã é poeta, carioca, de 1961. Mais aqui: http://eucanaaferraz.com.br/

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Sobre as memórias

Memória é onde se guardam as coisas do passado. Há dois tipos de memória: memórias sem vida própria e memórias com vida própria.

As memórias sem vida própria são inertes. Não têm vontade. Sua existência é semelhante à das ferramentas guardadas numa caixa. Não se mexem. Ficam imóveis nos seus lugares, à espera. À espera de que? À espera de que as chamemos. Ao chegar a um hotel a recepcionista nos entrega uma ficha para ser preenchida. Lá estão os espaços em branco onde deverei escrever meu nome, endereço, número da carteira de identidade, do CPF, número do telefone, e-mail. Abro a minha caixa de memórias sem vida própria e encontro as informações pedidas. Se desejo ir do meu apartamento à casa de um amigo eu pergunto: que ruas tomar para chegar lá? Abro a caixa de ferramentas e lá encontro um mapa do itinerário que devo seguir. É da caixa das memórias sem vida própria que se valem os alunos para responder às questões propostas pelo professor numa prova. Se a memória não estiver lá ele receberá uma nota má...

São essas as memórias que os neurologistas testam para ver se uma pessoa está sofrendo do mal de Alzheimer. O médico, como quem não quer nada, vai discretamente fazendo perguntas sobre a cidade onde se nasceu, o nome dos pais, onde moram os filhos. Se a pessoa não souber responder é porque sua caixa de memórias está vazia. Essas memórias são muito importantes. Sem elas não poderíamos nos virar na vida. Estaríamos sempre perdidos.

As memórias com vida própria, ao contrário, não ficam quietas dentro de uma caixa. São como pássaros em vôo. Vão para onde querem. E podemos chamá-las que elas não vêm. Só vêm quando querem. Moram em nós mas não nos pertencem. O seu aparecimento é sempre uma surpresa. É que nem suspeitávamos que estivessem vivas! A gente vai calmamente andando pela rua e, de repente, um cheiro de pão. E nos lembramos da mãe assando pães na cozinha... Viajando, olhando a paisagem com pensamento perdido, vemos um rio. E a alma começa a recitar "O Tejo é mais belo que o rio da minha aldeia. Mas o Tejo não é mais belo que o rio da minha aldeia. Porque o Tejo não é o rio da minha aldeia." E nos lembramos então do riachinho em que brincávamos quando crianças.

Uma leitora enviou-me um e-mail em inglês. Desculpou-se. É egípcia. Vive no Brasil, entende bem o português mas tem dificuldades em se expressar. Disse-me que gostava das coisas que escrevo. Escreveu-me para dizer que uma palavra, uma única palavra que eu havia escrito a apunhalara. Numa crônica que eu escrevera para minhas netas, contando como era a vida na roça, disse que não havia eletricidade. Portanto não havia geladeiras. As comidas eram guardadas num armário de tela chamado "guarda-comida". Essa foi a palavra que a apunhalou.
Como é que uma palavra tão banal pode apunhalar? Não foi a palavra. Foi a lembrança. Ela já havia se esquecido de que essa palavra existia. Aí, quando ela a leu, um passado longínquo retornou. Ela se viu menina na cozinha de sua casa no Cairo. Lá havia um guarda-comida...

"Alma" é o nome do lugar onde se encontram esses pedaços perdidos de nós mesmos. São partes do nosso corpo como as pernas, os braços, o coração. Circulam em nosso sangue, estão misturadas com os nossos músculos. Quando elas aparecem o corpo se comove, ri, chora...
Para que servem elas? Para nada. Não são ferramentas. Não podem ser usadas. São inúteis. Elas aparecem por causa da saudade. A alma é movida à saudade. A alma não tem o menor interesse no futuro. A saudade é uma coisa que fica andando pelo tempo passado à procura dos pedaços de nós mesmos que se perderam.

Minha amiga querida Maria Antônia de Oliveira escreveu:
"A vida se retrata no tempo formando um vitral, de desenho sempre incompleto, de cores variadas, brilhantes, quando passa o sol. Pedradas ao acaso acontece de partir pedaços ficando buracos, irreversíveis. Os cacos se perdem por aí. Às vezes eu encontro cacos de vida que foram meus, que foram vivos. Examino-os atentamente tentando lembrar de que resto faziam parte. Já achei caco pequeno e amarelinho que ressuscitou de mentira, um velho amigo. Achei outro pontudo e azul, que trouxe em nuvens um beijo antigo. Houve um caco vermelho que muito me fez chorar, sem que eu lembrasse de onde me pertencera." (Ceriguela, p.14)

É com esses cacos de memória, pedaços de nós mesmos, que se escrevem romances, estórias infantis, poesia, lendas, mitos religiosos, utopias. Nietzsche dizia que só amava os livros escritos com essas memórias, escritos com sangue. E Guimarães Rosa dizia a seus leitores que, para se ser escritor é preciso conhecer a alquimia do sangue do coração humano. Ler um livro escrito com sangue é participar de um ritual antropofágico. É uma celebração eucarística.

Quando eu contava uma estória para minha filha pequena ela me perguntava: "Papai, essa estória aconteceu mesmo?" Traduzindo em linguagem de adulto: essas memórias são memórias de coisas que aconteceram ou são invenções? Eu ficava quieto, sem saber o que dizer. A explicação seria: "Não aconteceu nunca para que aconteça sempre..." O corpo se alimenta do que não existe. Temos saudade do que nunca aconteceu.

É muito fácil contar o passado usando as memórias sem vida própria. É só coletar os fatos e organizá-los numa ordem temporal e espacial. É assim que se escreve a "história". Mas é muito difícil contar as memórias com vida própria. Mia Couto, escritor angolano, sabe disso. Eis o que escreveu: "O que Dona Luarmina me solicita são exactas memórias. E isso é o que eu menos quero. Não é que me faltem lembranças. Estão é espalhadas em toda a minha substância. Meu corpo foi-se tornando um cemitério de tempo, parece um desses bosques sagrados onde enterramos nossos mortos."

As coisas se complicam quando é um velho contando estórias da sua infância. A saudade mistura tudo. A saudade não conhece o tempo. Não sabe o que é antes e nem depois. Tudo é presente. "A lembrança pura não tem data. Tem uma estação. Que sol ou que vento fazia nesse dia memorável? O devaneio não conta histórias..." (Bachelard)

Aí vem a confusão. O escritor duvida de suas lembranças e pergunta como a Adélia Prado: "Houve esta vida ou a inventei?" Se a Adélia dirigisse a mim a sua pergunta acerca das coisas que eu conto eu responderia. "Se essa vida não houve, quando a escrevo fica havendo...

Rubem Alves
(Correio Popular, 28/08/2005)

poesia na Paulista

A Casa das Rosas passou por uma grande reforma em suas instalações. Espaço tradicional da cultura paulistana, está de volta com alguns eventos. Algum tempo atrás, eu fui em dois saraus e gostei bastante. Pretendo voltar em breve.

Um pouco da história do lugar:

Construída numa área de 5.500 metros quadrados, a Casa possui 30 cômodos no estilo arquitetônico francês, além um enorme vitral colorido, que decora o hall de entrada. Seus pavimentos se dividem em térreo, mansarda, primeiro andar e porão. A atração do espaço é o jardim, inspirado do Palácio de Versalhes, que abriga o famoso roseiral, origem do nome da casa.

(...)
Em 2004, a Casa das Rosas foi reinaugurada com nova vocação: o primeiro espaço público do país destinado à poesia, nomeado de Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, abrigando o acervo de cerca de 30 mil volumes da biblioteca do poeta, tradutor e ensaísta Haroldo de Campos (1929-2003). A atribuição desta nova vocação à Casa das Rosas tem se revelado um grande acerto: uma biblioteca circulante especializada em poesia, cursos bimestrais, exposições, peças de teatro, lançamentos de livros, palestras, eventos musicais.

Veja a programação de eventos aqui:
http://www.casadasrosas.sp.gov.br/

terça-feira, 2 de outubro de 2007

aviso

Peço àqueles que me amam
intensamente,
que aguardem pacientemente
do lado de fora.
Se a porta não abrir
E o tempo passar,
É melhor desistir e ir embora.
Fiquei com aqueles que me fazem amar.

(Flora Figueiredo)

Gentilmente copiado e enviado pela queridíssima Liloka.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Itapoã é aqui

O que faz um dia comum se tornar um dia especial? Na minha opinião, um conjunto de fatores:

1. Você estar bem com você mesma, feliz, animada;
2. Estando ok no item 1, programar-se para estar com pessoas que te fazem bem, cujas companhias são sempre boas, agradáveis. Aquele tipo de pessoa que você quer estar sempre perto, conversa o dia inteiro e o papo não acaba, porque a coisa flui, independente de qualquer coisa;
3. Se estar com pessoas amigas já é bom, imagina fazer programas bacanas com elas então? Sim, é maravilhoso. Quem tem amigos sabe bem disso. Quem não tem deve sofrer pela falta que eles fazem (os amigos e os programas).

Enfim, este final de semana foi puro deleite de sexta a domingo, com os atributos acima e mais. Pessoas adoráveis, papo leve, despretensioso, muitas risadas, almoços fartos e deliciosos, algumas surpresas (ui!), MPB de primeira linha e muito afeto, muito mesmo. Algumas das pessoas que mais amo estavam comigo este findis. Obrigada, Sil, Li e Ju. Vocês nem imaginam o quanto são importantes.

Ahh, e de quebra teve show do Toquinho na sexta no Via Funchal. AMEI. O cara está mandando tão bem quanto Baden Pawell no violão. Show de bola mesmo. Gil, queridíssimo, serei eternamente grata pelo convite.

E hoje eu fiquei pensando que nem preciso passar uma tarde em Itapoã para passar momentos felizes. Que nada. Itapoã é aqui mesmo.

30

Você define: "A vida inteira de um inseto" ou "Um embrião pra virar feto" ou "A folha do calendário".

"Quero que saibas que me lembro
Queria até que pudesses me ver
És parte ainda do que me faz forte
Pra ser honesto só um pouquinho infeliz"

Renato Russo / Legião Urbana

E a memória continua conspirando contra mim. Pensando seriamente em começar a ouvir Calypso. E a ler Paulo Coelho.

eterna criança

Resposta ao tempo
(Nana Caymmi)

Batidas na porta da frente é o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter argumento
Mas fico sem jeito, calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar e eu não sei
Um dia azul de verão, sinto o vento

Há folhas no meu coração é o tempo
Recordo um amor que perdi, ele ri
Diz que somos iguais, se eu notei
Pois não sabe ficar e eu também não sei

E gira em volta de mim, sussurra que apaga os
caminhos
Que amores terminam no escuro sozinhos
Respondo que ele aprisiona, eu liberto
Que ele adormece as paixões, eu desperto
E o tempo se rói com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor pra tentar reviver

No fundo é uma eterna criança
que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder me esquecer
No fundo é uma eterna criança
que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder me esquecer

Composição de Aldir Blanc e Cristovão Bastos