"Não pense que eu ando atrás só de belas coisas simples. Eu quero qualquer coisa, desconexa, contraditória, insegura, não tem importância, desde que seja sua. As definições redondas e grandiloqüentes, as coisas categóricas e acabadas não me satisfazem, porque eu não sou assim", escreveu Maury Gurgel Valente para Clarice Lispector. Este blog traz excertos do cotidiano, poesias, devaneios sobre relacionamentos, cinema, literatura, música... Belas coisas simples, como eu, você e a vida.
domingo, 30 de dezembro de 2007
tentação tentada
Isto implica o esforço natural e necessário de conseguir e manter o amor: um decotezinho mais brejeiro, batom Anaconda de brilho, um puxadinho de nada a lápis crayon no cantinho dos olhos, fazer aquela cara que eu sei fazer, pondo minha alma todinha num certo modo de baixar e levantar os olhos, primeiro oblíquo, depois direto. Porque eu gosto da humanidade, em particular da representação masculina da humanidade. É muito divertido comerciar com os homens, estimulante como nenhuma outra coisa é. Eles ficam encantadores, querendo pegar a gente em falso. Isso o homem comum. Imagine os santos! Fico em estado de loucura, tentação tentada. Tem coisas que eu faço bem. Posso fazê-las mesmo? Tudo é de Deus, menos o pecado. Você que me escuta e tem coração maldoso, ri pra dentro pensando que eu sou fácil. Não sou. Eu sou muito pedregosa, caçadeira de chifre na cabeça de cavalo, caçadeira de indaca. Invez de casar e cuidar dos filhos, pôr espinafre moído na sopa deles pra eles ficarem fortes, pregar com linha dupla os botões na camisa do meu homem, eu fico teologando em latim, fico querendo um Romeu constantemente na minha janela, falando e tocando violão pra mim como se eu fosse a única mulher desta terra e a mais bonita, sem a qual homem algum pode viver. Ó meu Deus, no fundo é só isso mesmo que eu quero, é só por isso que tantas vezes uso Seu Santo Nome, em socorro do meu humano amor. É usá-lo em vão? Eu quero a santidade na reunião de literatos discutindo a metáfora. Eu pressinto que pode.
Adélia Prado
incomensurável. mesmo.
Depois, imaginou que este corpo adorável, que este rosto adorável, estavam mortos, e disse a si próprio que não poderia sobreviver-lhe um dia que fosse. Sabia que era capaz de a proteger até ao último suspiro, que era capaz de dar a vida por ela.
Mas esta sensação de amor asfixiante não passava de um fraco clarão efémero, porque o espírito dele estava totalmente ocupado pela angústia e pelo medo. Estava deitado ao lado de Kamila, e sabia que a amava infinitamente, mas estava mentalmente ausente como se a acariciasse a uma distância incomensurável, de várias centenas de quilómetros."
Milan Kundera in A Valsa do Adeus
quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
ah, o teu nome
não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa,
nem retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei
que um poema se escreveria entre nós dois; mas
não comprei o vinho, não mudei os lençóis,
não perfumei o decote do vestido.
Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome
(mas nem pensar em suspirá-lo ao teu ouvido);
se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira -
estalam-me brasas no peito, desvairadas, e respiro
com a violência de um incêndio; mas parto
antes de saber como seria. Não me perguntes
porque se mata o sol na lâmina dos dias
e o meu mundo continua à tua espera:
houve sempre coisas de esguelha nas paisagens
e amores imperfeitos - Deus tem as mãos grandes.
Maria do Rosário Pedreira
quarta-feira, 26 de dezembro de 2007
lindo e simples
Férias de trabalho e da vida maluca de Sampa, mas nunca de poesia. E se tem um poeta que eu gosto muito e leio sempre é o Manoel de Barros. Me encanto pela forma como ele brinca com as palavras, tratando cada uma delas com uma delicadeza e simplicidade ímpar.
"Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdomen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse."
Manoel de Barros
segunda-feira, 24 de dezembro de 2007
lábios em silêncio
I
Querida, mando-te
uma tartaruguinha de presente
e principalmente de futuro
pois viverá uma riqueza de anos
e quando eu haja tomado a estígia barca
rumo ao país obscuro
ela te me lembrará no chão do quarto
e te dirá em sua muda língua
que o tempo, o tempo é simples ruga
na carapaça, não no fundo amor.
II
Nem corbeilles nem
letras de câmbio
nem rondós nem
carrão 69
nem festivais
na ilha d’amores
não esperes de mim
terrestres primores.
Dou-te a senha para
o dom imperceptível
que não vem do próximo
não se guarda em cofre
não pesa, não passa
nem sequer tem nome.
Inventa-o se puderes
com fervor e graça.
III
Sempre foi difícil
ah como era difícil escolher
um par de sapatos, um perfume.
Agora então, amor, é impossível.
O mau gosto
e o bom se acasalaram, catrapuz!
Você acha mesmo bacana esse verniz abóbora
ou tem medo de dizer que é medonho?
E aquele quadro (objeto)? Aquela pantalona?
Aquela poesia? Hem? O quê? Não ouço
a sua voz entre alto-falantes, não distingo
nenhuma voz nos sons vociferantes...
Desculpe, amor, se meu presente
é meio louco e bobo
e superado:
uns lábios em silêncio
(a música mental)
e uns olhos em recesso
(a infinita paisagem).
Carlos Drummond de Andrade
sábado, 22 de dezembro de 2007
só um pouquinho familiar
O herói da ausência tem olhos cheios de noite. Quando se vê desolado sobre a página, sai em busca de sentido e claridade sem saber se volta para casa ferido de vida ou de morte. Seus olhos estão deitados no infinito, suas mãos tateiam a poeira das belezas transitórias. Sua voz guarda no âmago poder de ocultação e desvelo (como todas as verdades) e esse movimento governa o princípio que desencadeia as ações fabulosas, suas glórias e fracassos. Noite após noite ele cumpre seu rito sob as luas bordadas no céu das gregas calendas. Só irá consagrar-se na hora inebriante em que florir sua pálpebra.
Contador Borges
quinta-feira, 20 de dezembro de 2007
desejo, désir, wish, voglia
***
Eu desejo que desejes ser feliz de um modo possível e rápido,
desejo que desejes uma via expressa rumo a realizações não utópicas,
mas viáveis, que desejes coisas simples como um suco gelado
depois de correr ou um abraço ao chegar em casa,
desejo que desejes com discernimento e com alvos bem mirados.
Mas desejo também que desejes com audácia,
que desejes uns sonhos descabidos
e que ao sabê-los impossíveis não os leve em grande consideração,
mas os mantenha acesos, livres de frustração,
desejes com fantasia e atrevimento,
estando alerta para as casualidades e os milagres,
para o imponderável da vida, onde os desejos secretos são atendidos.
Desejo que desejes trabalhar melhor, que desejes amar com menos amarras,
que desejes parar de fumar, que desejes viajar para bem longe
e desejes voltar para teu canto, desejo que desejes crescer
e que desejes o choro e o silêncio, através deles somos puxados pra dentro,
eu desejo que desejes ter a coragem de se enxergar mais nitidamente.
Mas desejo também que desejes uma alegria incontida,
que desejes mais amigos, e nem precisam ser melhores amigos,
basta que sejam bons parceiros de esporte e de mesas de bar,
que desejes o bar tanto quanto a igreja,
mas que o desejo pelo encontro seja sincero,
que desejes escutar as histórias dos outros,
que desejes acreditar nelas e desacreditar também,
faz parte este ir-e-vir de certezas e incertezas,
que desejes não ter tantos desejos concretos,
que o desejo maior seja a convivência pacífica
com outros que desejam outras coisas.
Desejo que desejes alguma mudança,
uma mudança que seja necessária e que ela não te pese na alma,
mudanças são temidas, mas não há outro combustível para essa travessia.
Desejo que desejes um ano inteiro de muitos meses bem fechados,
que nada fique por fazer, e desejo, principalmente,
que desejes desejar, que te permitas desejar,
pois o desejo é vigoroso e gratuito, o desejo é inocente,
não reprima teus pedidos ocultos, desejo que desejes vitórias,
romances, diagnósticos favoráveis, mais dinheiro e sentimentos vários,
mas desejo, antes de tudo, que desejes, simplesmente.
Martha Medeiros
terça-feira, 18 de dezembro de 2007
deviam ensinar no colégio
Daquilo que sei...
Amor é base, afeto conseqüência, felicidade possível (pulverizada em momentos), vida movimento e crescimento, viver - plantio opcional e colheita inevitável, bom humor essencial, encontros reconhecimentos, nunca meras coincidências, causa e efeito não é conversa mole não, comprometimento indispensável, responsabilidade um princípio e afinidade para ser levada muitíssimo a sério, portanto, pessoas, vamos procurar nossa turma!
Simples e genial, não?! E pensar o quanto eu sofri com as equações de Física e Matemática... pra que Meu Deus, por quê?
sábado, 15 de dezembro de 2007
e os dedos da memória, cruéis
Dora Ferreira da Silva
Escoam-se
areias na ampulheta
pranto
riso quase sereno.
Um destino ressoa
alada música
Appassionata.
É preciso tempo
o vagar dos crepúsculos
o começo
a promessa
o findar das estações
um olhar calmo sobre a vida
formas
contornam sensações
o céu infinito
explode cósmica
ternura.
Nada indiferente
sob a lua seus enigmas -
naufrágio das coisas
no azul.
Vivos e mortos
perambulam nas estradas
um sorriso nos lábios.
O que dizem
no silêncio
agora pleno
da alma?
Appassionata.
O gesto preserva a
emoção e o brusco
perpassar de folhas mortas.
Gemem pássaros noturnos
fiéis da madrugada
até que o horizonte desperte
em sua luz dourada.
Dedos da memória
afagam e são cruéis
tudo ressurge e se transfigura
no que poderia ser
se a chuva desabasse.
Só os relâmpagos
ao longe
de raios mudos.
A noite se expandia
se expande
ou tudo invadirá
com seus negros andrajos?
Olho sem ver
a paisagem
árvores dobradas pelo vento
ouço uma voz distante
não sei o que diz.
Apenas um manto me aquece
na noite gélida
mas pulsa o coração
da trêmula
Appassionata.
É preciso desdobrar
asas de amor conhecimento
liberar o tato
de todas as coisas
que esperam.
Pois o eco fugiria
das palavras vãs
sem pólen
os pássaros voltariam
aos ninhos de sombra
se teu coração
recuasse
e os cabelos
não soltasses
Appassionata.
A nudez do sono
frêmitos do vento
um perfil vizinho
jamais decifrado
carícias da alma
aquecendo o corpo
o poema lembrado
na neblina do outrora
os lábios unidos
no mais leve dos beijos
a flama e o desejo
a carne fremente
Appassionata.
O tempo findando
e agora tão próximos
corpo e alma
num limiar
agônico.
Silêncio esvaecido
de uma vida inteira
de busca
e o achado se perdendo
na mais fria madrugada
mas o grito irrompendo
tudo resume
Appassionata.
Vida longa
atenta aos sinais
rente aos vestígios de deuses forasteiros
é preciso
ser viva e morta
rolar nos gramados
amar as flores
nada aprisionar
retendo na avareza.
Amar em silêncio
com a maior leveza
sem pedir em troca o amor.
É preciso ter um corpo
é preciso ter alma
Appassionata.
Sobre a autora
Dora Ferreira da Silva é poeta e tradutora. Seu livro de poemas Hídrias recebeu o Prêmio Jabuti em 2005.
sexta-feira, 14 de dezembro de 2007
tua violenta ternura
“Esse incessante morrer/que nos teus versos encontro/é tua vida, poeta,/e por ele/te comunicas com o mundo em que te esvais.//Debruço-me em teus poemas/e nele percebo ilhas/em que nem tu nem nós habitamos/(ou jamais habitaremos)/e nessas ilhas me banho/num sol que não é dos trópicos,/numa água que não é das fontes/mas que ambos refletem a imagem/de um mundo amoroso e patético.//Tua violenta ternura, tua infinita polícia,/tua trágica existência/no entanto sem nenhum sulco/exterior-salvo tuas rugas,/tua gravidade simples,/a acidez e o carinho simples/que desbordam em teus retratos,/que capturo em teus poemas,/são razões por que te amamos/e por que nos fazes sofrer(...)Não é o canto da andorinha, debruçada nos telhados da Lapa,/anunciando que tua vida passou à toa,à toa/Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argentino,/diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito infiltrado(...)Não são os mortos do Recife dormindo profundamente na noite(...)és tu mesmo, é tua poesia,(...)é o fenômeno poético, de que te constituíste o misterioso portador”.
Assim expressou-se Drummond quando Manuel Bandeira completou 50 anos (Ode no Cinqüentenário do poeta Brasileiro-poema do livro SENTIMENTO DO MUNDO). O ano era 1940, marcado pela segunda guerra mundial. O novo livro de Drummond trazia a necessidade de darmo-nos as mãos e sermos no futuro uma lembrança,como um retrato na parede, porque o amor resultou inútil e olhos não choram. Porque chegara um tempo em que não adiantava morrer. A vida? Uma ordem. Vida apenas, sem mistificação.
Fonte: http://moisesneto.com.br/estudo23.html
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
vai 2007, vai
Este foi um dos anos mais intensos. Vivi intensamente cada minuto e não me arrependo de nadinha, nadinha. Faria tudo de novo, talvez aproveitando mais e me estressando menos. Criando menos expectativas, a gente pode ser muito mais feliz. Aprendi isso. E um pouco mais.
sexta-feira, 7 de dezembro de 2007
amanhã
Michel Eyquem de Montaigne
quinta-feira, 6 de dezembro de 2007
razão e sensibilidade
Afe. Ninguém merece encontrar pessoas que entram na sua vida e se revelam loucas, psicóticas mesmo. Babado forte, espero que acabe logo e a santa paz volte a reinar. Dentro e fora de moi.
E enquanto isso, na terra do Nunca... rs
Post abaixo foi escrito há algum tempo e como eu estou sem tempo nem cabeça e já me disseram que abandono de blog é crime inafiançável, aí vai:
Sensibilidade: eis um atributo que admiro muito. Principalmente no sexo oposto. Não falo de homem molenga, fraco ou afetado. Não. É o cara que sabe ver uma obra de arte e entender seu valor, capta rápido uma tirada mais sarcástica e subliminar, prefere o humor inglês ao americano. Aprecia uma boa música, gosta de ler (prosa e poesia). Vê além do que está visível aos olhos. E não tem medo de verbalizar isso e parecer cafona. Não vê problema de chorar quando está triste - ou feliz demais. Eles não são chatos, são apenas sensíveis. Mas também sabem pegar, beijar e fazer todo o serviço direitinho. Claro, como tudo que é bom, são poucos os exemplares existentes.
Será que é pedir muito? Espécie em extinção? Entrega em casa?
domingo, 2 de dezembro de 2007
amor de longo alcance
Já quase nada havia em comum entre aqueles rostos e a realidade, quando enfim, numa praça se encontraram. Juntos, podiam agora viver a vida com que sempre haviam sonhado.
Porém cedo descobriram que a força do seu passado amor era insuperável. Depois de tantos anos de afastamento, não podiam viver senão separados, apaixonadamente desejando-se. E, entre risos e lágrimas, despediram-se, indo morar em cidades distantes.
(Marina Colasanti, in Contos de Amor Rasgados)
um bom presente de natal, pq não?
"35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum" - Ivana Arruda Leite (org.)
Bertrand Brasil, 170 págs., R$ 27,00
Autores da nova e da novíssima geração, como Xico Sá, Marcelino Freire, José Roberto Torero, Andréa del Fuego e Ivana Arruda Leite estão neste divertido "35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum - Literatura de Baixo-Ajuda" com textos que satirizam os livros de auto-ajuda. A irreverência já começa com um prefácio de Machado de Assis "psicografado". Seguem várias receitas, como uma "para mulheres medíocres capturarem homens idem", de Ana Elisa Ribeiro; o criativo "Livros de Auto-Ajuda: Como Largar Este Vício", de André Laurentino; "Como Aprimorar uma Habilidade Ancestral: a Mentira", de Maria José Silveira; e o "Horóscopo Terrorista", de Santiago Nazarian. Afinal,exercitar o bom humor é uma atividade que vai ajudá-lo(a) a ser feliz...