domingo, 20 de setembro de 2009

post 386

Tem sido difícil voltar aqui. Por várias razões, uma delas, talvez a que mexa com todas as outras e seja maior que a vontade de verbalizar algumas coisas, é a falta de tempo. Tenho trabalhado muitíssimo, estou retomando algumas leituras, buscando sempre que possível a fatia de diversão e afeto que me cabe, pretendo retomar alguns projetos antigos e começar um novo também.

Diante disso e das visitas que ainda recebo (obrigada, sempre!), decidi dar um tempo. Tirar umas férias do Belas Coisas Simples. Assim como foi difícil voltar, parece mais complicado ainda cessar o blog definitivamente, porque as coisas não são definitivas e algumas portas, não tem jeito, algumas portas eu insisto em manter abertas. De setembro de 2007 até hoje, foram 385 posts, 21.558 visitas, muitas amizades feitas e outras tantas fortalecidas, risadas, lágrimas, suspiros. Muito da minha vida vivida nos últimos 3 anos está aqui, nas entrelinhas, aberto para quem quiser ver. Foi um período intenso, com direito a descobertas, amores, mágoas, recomeços, momentos insuportavelmente felizes e inquietantes, alguns até beirando o sublime mesmo. De tudo, ficou muita coisa. Pode acreditar. E, por isso, deixo para o último post uma música que sempre - eu disse sempre - será parte e trilha sonora destes momentos:



Quem sabe, um dia, as coisas belas e simples voltem ao seu colorido original. Por ora, agradeço a quem ainda visita, aos amigos que escutaram muitas das histórias ditas aqui, e, principalmente, àqueles que fizeram parte delas - direta ou indiretamente. Que o dom de amar e buscar a felicidade esteja sempre presente em nossas vidas e nos faça pessoas melhores. Um dia eu volto. Ou não. :-P

Aos amigos virtuais que quiserem manter o contato, continuo nas redes sociais (twitter, facebook e orkut). A vida segue e, hoje, ela pede novos caminhos. Um beijo em todos.

sábado, 29 de agosto de 2009

don´t kiss me goodbye

Não, não é recado. É apenas uma música linda que eu já tinha nos meus vídeos do orkut há uns meses, mas hj ouvi de novo e aff... apaixonei. E também porque as cenas do vídeo remetem ao dia de hoje, escandalosamente claro e azul, como que chamando para um passeio ao ar livre.



Esta também é uma das músicas que deixam o filme "O Escafandro e a Borboleta" ainda mais belo. Sensível, triste, poético. Lindo demais.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

batidas desordenadas do coração

Bonito isso aqui:

"Estava alegre nesse dia, bonita também. um pouco de febre
também. por que esse romantismo: um pouco de febre? mas
a verdade é que tenho mesmo: olhos brilhantes, essa força
e essa fraqueza, batidas desordenadas do coração.
quando a brisa de verão batia no seu corpo, todo ele estremecia
de frio e calor. e então ela pensava muito rapidamente, sem
poder parar de inventar. é porque estou muita nova ainda
e sempre que me tocam ou não me tocam, sinto - refletia.
pensar agora, por exemplo, em regatos louros. exatamente
porque não existem regatos louros, compreende? assim se foge.
Ah, piedade é o que sinto então. piedade é minha forma de amor,
de ódio, de comunicação. é o que me sustenta contra o mundo,
assim como alguém vive pelo desejo, outro pelo medo.
piedade das coisas que acontecem sem que eu saiba.
mas estou cansada, apesar da minha alegria de hoje,
alegria que não se sabe de onde vem, como a da manhãzinha
de verão. estou cansada, agora agudamente.
vamos chorar juntos, baixinho. por ter sofrido e continuar
tão docemente. a dor cansada numa lágrima simplificada.
mas agora já é desejo de poesia, isso eu confesso, deus.
durmamos de mãos dadas. o mundo rola e em alguma parte
há coisas [...] flutuando sobre o mar, eis o sono.
por que ela estava tão ardente e leve, como o ar que vem
do fogão que se destampa?"

Clarice Lispector

sábado, 15 de agosto de 2009

esperança.

Conheci através de um link de alguém que não lembro mais no Facebook, apaixonei, baixei todos os discos. Eis aqui um pedacinho de Lura Criola, caboverdiana sensacional, com esta música que resume bem o sentimento que me cabe hoje. Apesar de tudo, fica a esperança, o amor, a poesia, a natureza. Tudo aí. Vale desfrutar cada momento, cada instante. Cada bela coisa simples que surgir. :)



Bom final de semana ensolarado a todos! :))

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

pelo dia 10 de agosto de 2009


Imagem tirada daqui: http://grifatexto.blogspot.com/

Julio Cesar foi um dos caras mais geniais que eu já conheci. Um pai que incentivava a leitura nos filhos de uma forma muito lúdica, que dava gosto de ver. Um cidadão íntegro que fazia questão de ser honesto e fazer o bem. Um marido que continuou amando - e desejando - a mulher mesmo com câncer. Um leitor voraz de muita coisa, de Clarice a Baudelaire. Um homem intenso que não aguentou as dores da alma e do coração.

O tempo de convívio com JC foi pequeno (1 hora e meia de viagem SP - Santos, 2 visitas à entidade assistencial Casa Vida I, 2 ou 3 conversas no msn e 1 telefonema) mas o suficiente para ganhar a admiração eterna da amiguinha aqui.

Fica em paz, meu brother. Teu único defeito (?) foi amar demais.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

a memória é como o ventre da alma

Encerro também na memória os afectos da minha alma, não da maneira como os sente a própria alma, quando os experimenta, mas de outra muito diferente, segundo o exige a força da memória.
Não é isto para admirar, tratando-se do corpo: porque o espírito é uma coisa e o corpo é outra. Por isso, se recordo, cheio de gozo, as dores passadas do corpo, não é de admirar. Aqui, porém, o espírito é a memória. Efectivamente, quando confiamos a alguém qualquer negócio, para que se lhe grave na memóra, dizemos-lhe: «vê lá, grava-o bem no teu espírito». E quando nos esquecemos, exclamamos: «não o conservei no espírito», ou então: «escapou-se-me do espírito»; portanto, chamamos espírito à própria memória.
Sendo assim, porque será que, ao evocar com alegria as minhas tristezas passadas, a alma contém a alegria e a memória a tristeza, de modo que a minha alma se regozija com a alegria que em si tem e a memória se não entristece com a tristeza que em si possui? Será porque não faz parte da alma? Quem se atreverá a afirmá-lo?

Não há dúvida que a memória é como o ventre da alma. A alegria, porém, e a tristeza são o seu alimento, doce ou amargo. Quando tais emoções se confiam à memória, podem ali encerrar-se depois de terem passado, por assim dizer, para esse estômago; mas não podem ter sabor. É ridículo considerar estas coisas como semelhantes. Contudo, também não são inteiramente dissemelhantes.
Reparai que me apoio na memória, quando afirmo que são quatro as perturbações da alma: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza. Qualquer que seja o raciocínio que possa fazer, dividindo cada uma delas pelas espécies dos seus géneros e definindo-as, aí encontro que dizer e declaro-o depois. Mas não me altero com nenhuma daquelas perturbações, quando as relembro com a memória. Ainda antes de eu as recordar e revolver, já lá estavam. Por isso consegui, mediante a lembrança, arrancá-las dali.
Assim como a comida, graças à digestão, sai do estômago, assim também elas saem do fundo da memória, devido à lembrança. Então, porque é que o que discute, ou aquele que delas se vai recordando, não sente, na boca do pensamento, a doçura da alegria, nem a amargura da tristeza? Porventura nisto é dissemelhante o que não é semelhante em todos os seus aspectos?
Quem em nós falaria voluntariamente da tristeza e do temor, se fôssemos obrigados a entristecer-nos e a temer, sempre que falamos de tristeza ou temor? Contudo, não os traríamos à conversa se não encontrássemos na nossa memória, não só os sons destas palavras, conforme às imagens gravadas em nós pelos sentimentos corporais, mas também a noção desses mesmos sentimentos. As noções não as alcançamos por nenhuma porta da carne, mas foi o espírito que, pela experiência das próprias emoções, as sentiu e confiou à memória; ou então foi a própria memória que as reteve sem que ninguém lhas entregasse.

Santo Agostinho, in 'Confissões'


Interessante este texto. Nunca havia pensado sobre este ponto de vista de Santo Agostinho: conforme o tempo passa, situações, momentos, sentimentos e pessoas do passado vão cada vez mais pertencendo a um espaço da sua vida que não lhe pertence mais. É como se sabidamente guardássemos em uma caixinha os momentos de ontem, principalmente aqueles insuportavelmente felizes e os terrivelmente doloridos. Muita coisa acaba ficando para trás, lá no limbo dos instantes esquecidos, mas as coisas mais fortes vão para este reservatório de lembranças, e jamais serão esquecidas. Mas o mais importante - foi a leitura que fiz do texto - é que eles deixam de doer quando são mencionados. É quando a ferida cicatriza e a gente se percebe bem e curado para tentar de novo. É isso. Gostei. Boa semana pra todo mundo.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

o tempo baralhou as pistas que nos guiavam

Neste momento de distâncias impensáveis e retornos confusos, cabe-me dizer, pelas belas palavras de Rui:

Back to the old house

Boy meets girl na biblioteca. Os teus olhos eram
tão cúmplices, dir-se-ia que tínhamos escrito juntos
todos esses livros. Uma única tarde podia levar-nos
longe demais para os barcos, era fácil esquecer
que lá fora havia apenas uma cidade pequena
com o inverno nos vidros.

Os livros permanecem onde os abandonámos
mas o tempo baralhou as pistas que nos guiavam
nesse labirinto. Lembrar-me de ti significa
medir uma distância dentro de mim próprio.
serve isto para dizer o quanto nos afastámos da casa velha
onde era costume estar perto de ti dias inteiros.

(Rui Pires Cabral)

domingo, 2 de agosto de 2009

E que nada se perca infinitesimalmente.

Lindo, sensível e perfeito para um final de semana vivido com uma carga extra de surrealismo, amigos queridos e poesia:

"Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim."

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV'

quarta-feira, 22 de julho de 2009

o substituto do amor

Achei interessante uma matéria da Revista Vida Simples que fala sobre generosidade. Ok, o assunto não é novo, mas como tem gente por aí que simplesmente não aprende, não aceita ou não faz a menor questão de colocar em prática a máxima "faça o bem sem olhar a quem". Eu faço isso por você, mas e você, o que faz por mim? Como se a vida fosse um eterno jogo de interesses.

Esses 2 parágrafos resumem bem a idéia da reportagem e também o que eu penso sobre o assunto:

(...)“Em uma sociedade que pede apenas que você receba, nunca doe, a generosidade é um treino”, diz a terapeuta existencial e professora da PUC-SP Dulce Critelli. Para ela, o primeiro passo para a generosidade é sacar se somos, individualmente, capazes de oferecer. “O desafio é estar atento às necessidades da vida em comum, não só às nossas”. Para poder ajudar o outro, o primeiro passo é enxergá-lo, ouvi-lo, perceber suas necessidades.

Uma vez que percebemos, é hora de partir a ação. Porque ser generoso é, antes de tudo, uma escolha. É diferente, por exemplo, do amor. Quando amamos, seja um filho, seja um companheiro ou um amigo, somos capazes de grandes sacrifícios. Sem nem pensar duas vezes, uma mãe passa a noite na cabeceira do filho doente. Mas, se a criança em questão não for nosso filho, não somos capazes do mesmo gesto. Comte-Sponville pergunta: se o mendigo na rua fosse alguém que amamos, recusaríamos a ajuda que ele pede? A generosidade existe, então, como substituto do amor, para os casos em que não sentimos amor – afinal, não escolhemos senti-lo. Precisamos aprender a compartilhar com desconhecidos como fazemos com as pessoas que amamos.(...)

Reportagem completa no site da Revista Vida Simples.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

fogo que arde sem se ver

Pelo Dia do Amigo e por todos os outros dias do ano, minha singela homenagem a todos os seres especiais que eu tanto amo e com os quais partilho momentos escandalosamente bons e insuportavelmente ruins, sempre:

Vejo os amigos intensos que passaram
da paixão ao amor e com ternura os vejo.
Não pertencem ao grupo dos que nos fazem
sentir ignorantes, sempre com citação
ou referência a propósito, por exemplo,
de um fogo na serra, de um cão que atravessou
a estrada. Nem ao grupo dos que colam
voz transformadora a cada partícula de real.
Os amigos intensos se fazem vénias
é por brincadeira, eu com eles concluo
do péssimo estado do mundo. Era bom, era,
que fosse apenas Portugal. Os amigos
intensos não têm uma receita para me dar,
sabem que não há duas passagens iguais
da paixão ao amor, mas que é preciso
passar. Quando estão juntos os amigos intensos
são terra e ar, e água e fogo, palha e prata,
luz e oiro, murmúrio de folhas, eterna
canção, jura infantil, pêndulo forte, morna
parede, jardim selvagem, desdém que pensa,
ritmo que vem lá de muito longe, paixão
que soube passar ao amor, encontro e calor.

Helder Moura Pereira, IN
A Tua Cara Não Me É Estranha

Conto nos dedos aqueles que não têm a intensidade como uma de suas características principais. É, dizem que a gente só atrai aquilo que é. Deve ser. ;)

domingo, 19 de julho de 2009

happy ending*

Tão bom sair de casa, no inverno glacial que se abateu sobre SP este final de semana, e perceber que não foi à toa. Pois foi essa a sensação após o término do show de Vanessa Bumagny, que fez um espetáculo lindo e diferente com a participação do poeta Frederico Barbosa. O evento, na Biblioteca Alceu de Amoroso Lima (especializada em poesia, sim, gostaria muito de morar lá dentro), começou com um bate-papo entre os 2 sobre música e poesia e teve a mediação do também poeta Ademir Assunção. Mas a parte boa começou mesmo quando Vanessa cantou alguns poemas de Fred, musicados por ela, e depois prosseguiu mostrando ao público presente algumas de suas canções. Ela é linda, tem presença de palco, uma voz sensacional, tem canções em parceria com Zeca Baleiro e Chico César, AMA POESIA e faz questão de musicar poemas e colocá-los em seus discos e a pergunta que fica é: cadê essa guria nas rádios, nas aberturas das novelas, nas trilhas de cinema? Ela não soube responder a pergunta, eu tb não. Mas faço a minha parte e deixo aqui um vídeo muito bacana com uma música dela, com imagens do centrão de São Paulo, por coincidência ela anda em uma rua pertíssima do meu trabalho e por onde eu passo quase que diariamente. Aprecie! ;)



E depois ainda teve momentos agradáveis em um restaurante de comida mexicana, fazia tempo que não apreciava uns taquitos e estava tudo delicioso! :))

* Título de uma outra música linda dela, mas que não está no youtube.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

só uma palavra me devora...

O fluxo de acontecimentos que chamamos vida segue muito bem, obrigada. Agitadinho, como sempre, feliz, na maior parte do tempo. Há muito a dizer mas falta tempo, vontade e otras coisitas más. Encerro o período de silêncio com um poeminha lindo e denso e espero voltar em breve, com mais frequência e algumas novidades.

Uma Voz na Pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

(António Ramos Rosa)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

sobre os laços libidinais e algo mais...

Queria muito ter pensado e escrito isso aqui, achei sensacional:

(...)
"A rigor, a vida não faz sentido e nossa passagem por aqui não tem nenhuma importância. A rigor, o eu que nos sustenta é uma construção fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo. A rigor, ninguém se importa tanto com nossas eventuais desgraças a ponto de conseguir nos salvar delas. Contra este pano de fundo de nonsense, solidão e desamparo, o psiquismo se constitui em um trabalho permanente de estabelecimento de laços - "destinos pulsionais", como se diz em psicanálise - que sustentam o sujeito perante o outro e diante de si mesmo.

Freudianamente falando, a subjetividade é um canteiro de ilusões. Amamos: a vida, os outros, e sobretudo a nós mesmos. Estamos condenados a amar, pois com esta multiplicidade de laços libidinais tecemos uma rede de sentido para a existência. As diversas modalidades de ilusões amorosas, edipianas ou não, são responsáveis pela confiança imaginária que depositamos no destino, na importância que temos para os outros, no significado de nossos atos corriqueiros. Não precisamos pensar nisso o tempo todo; é preciso estar inconsciente de uma ilusão para que ela nos sustente."
(...)

Maria Rita Kehl, psicanalista
http://www.mariaritakehl.psc.br/

quarta-feira, 1 de julho de 2009

meus melhores desejos

Que a vida te seja suportável.
Que a culpa não afogue a esperança.
Que não te rendas nunca.
Que o caminho que segues seja sempre escolhido
entre dois pelo menos.
Que te importe a vida tanto como tu a ela.
Que não te agarre o vício
de prolongar as despedidas.
Que o peso da terra seja leve
sobre os teus pobres ossos.
Que a tua recordação traga lágrimas aos olhos
de quem nunca te disse que te amava.

Amalia Bautista

domingo, 28 de junho de 2009

a mente quieta, a espinha ereta e....

"O lugar onde eu mais aprecio estar é o vasto e arejado jardim do coração tranquilo. Nele, não sinto necessidade de entender coisa alguma. Não pergunto nada e nem preciso responder. O falatório desgastante, geralmente improdutivo, dos pensamentos abre espaço para o sorriso bom da paz. Nele, os problemas todos continuam a existir, as pendências, as dores, os embaraços, mas assim mesmo eu descanso. As coisas são como podem ser e eu não tento interromper o fluxo da vida. Não espero nada, porque tudo o que mais importa já está ali, não há felicidade mais pura do que essa que não depende de nenhuma motivação externa para cantar. Nele, eu me sinto em casa de novo, relembro a textura suave da nossa verdadeira natureza, perene e inalterável, ainda que nos afastemos muito dela e raramente consigamos estar no seu abraço. Por mais que eu a esqueça pouco tempo depois, e sempre a esqueço nos rodamoinhos emocionais do cotidiano, nunca saio com as mãos vazias: trago de lá algumas mudas de sol que, mesmo quando eu não percebo, me ajudam a clarear os trechos de breu do caminho."

Ana Jácomo
http://anajacomo.blogspot.com/

sexta-feira, 26 de junho de 2009

para você, Mike

Ainda me lembro do seu primeiro dia conosco. A noite foi chegando, e nada de você querer dormir. Só sabia brincar, latir e correr por todos os cantos da casa. Fui eleita por unanimidade a pessoa que cuidaria de você durante a noite. Adorei a idéia. Brincamos muito, e quando o cansaço chegou você dormiu como um pequeno anjo ao meu lado. No auge dos meus 13 anos, alguns dos dias mais felizes e engraçados foram passados ao seu lado. Lembra o dia que você escapou da coleira e pulou nas pernas da enfermeira? Rasgou a meia da moça, que pôs-se a fazer o maior escândalo no meio da rua. Lembro do alvoroço causado e de ter que correr até em casa para buscar uma meia-calça da minha mãe, só assim para fazer a moça sossegar e não chamar a polícia. Você não tinha limites. Comia demais, ficava nervoso demais, queria brigar com todos os cachorros da rua. Não se limitava ao seu tamanho de beagle, achava-se o melhor de todos. Mas também tinha as orelhas mais lindas, a cabeça mais cheirosa e a barriga mais gostosa de todas. Era só começar com uma coçadinha nas costas - e você se abria todo. Deitava confortavelmente no chão esperando o carinho. Podia ficar assim por longos e intermináveis minutos. Esse era seu modo de receber o nosso amor. Ficar no colo, nem pensar. Era difícil ver você quieto num canto, estavas sempre a correr, brincar, ou comer. O cheiro de sopa, carne, pizza e maçã atiçava o seus instintos mais primitivos, e você aprendeu a sentar pra pedir comida. Ninguém resistia e você acabava sempre ganhando algo. Nunca foi selvagem, nunca mordeu ninguém, mas por comida você ficava mais valente do que nunca. Roubou uma peça inteira de queijo de cima da mesa, outra de carne, deve ter abocanhado outros pratos também que agora não me recordo. É com saudade e olhos marejados que lembro de você, Mike. Espero que estejas bem, e que a comida seja farta e o travesseiro macio aí em cima. Amo você, sentirei falta sempre.

Para quem não sabe, Mike tinha 17 anos e meio, estava muito doente e morreu de falência múltipla de órgãos na madrugada do dia 25 de junho. Que me perdoem os admiradores de Michael Jackson, mas minhas lágrimas são para o Mike Sérgio, o cão.

Alguns closes:

na primeira fila do coração

«Se tantas pessoas dão a entender que vivem sem sonhos, é porque talvez haja um lugar, dentro de nós, onde eles se guardam, sem que se dê por isso. Não sei onde fica, reconheço. E, às vezes, intriga-me que o seu caminho e o nosso pareçam desencontrados. Imagino-o como uma longa despensa, mais ou menos esconsa (e fresca), de luz acolhedora, mas sem o bulício de uma praça de gente atarefada, onde se atropela quem esbraceja, fervilhante, e quem, do alto de uma janela, espreita, sereno, a vida lá em baixo. Em todas as pessoas, por mais que não pareça, há uma despensa de sonhos. Alguns, que depois de sonhados, se foram guardando, mais ou menos amarrotados e por escovar. Outros que lá foram parar embrulhados no papel colorido com que pousaram em nós, de surpresa. Posso estar enganado, mas acho - com convicção - que o mundo seria um lugar melhor (e mais bonito) se as pessoas se perdessem na despensa dos seus sonhos. pelo menos, de vez em quando.

Suponho que sempre que não podemos dizer, com simplicidade, abraça-me e não me perguntes porquê, há uma parte de nós que se esgueira para a despensa dos sonhos. E por lá fica, num já não sei se sei sentir. É aí que, sem ser fácil de entender, uma tristeza nos revolve, devagarinho. Não tanto pela dor com que magoa, mas pela vida de que nos separa (deixando que a rotina se desmazele nos sonhos e vá convencendo a vida a deixar de trocar mimos connosco).

Não sei se o grande privilégio dos sonhos será o de nos antecipar o futuro. Na verdade, imagino que eles sirvam para deixar que ele aconteça. Quanto mais preciosas são as pessoas que estão na primeira fila do nosso coração mais se tornam, perigosamente, abandonantes. Esperamos tanto que elas vão sempre um pouco mais à frente dos nossos sonhos que - quase sem querer - podem levá-los do júbilo para um canto, esquecido, na despensa dos sonhos. Quem não compreende um olhar nunca entenderá uma longa explicação. E será por isso, acho eu, que - depois de confiados à despensa - escasseiam as pessoas junto de quem os sonhos se possam confessar, dando vida ao seu desejo de serem nossos, outra vez (com a inocência, discreta de uma ave que encontra, em pleno voo, as suas asas). Na verdade, precisamos de ter quem olhe por nós para cuidarmos dos sonhos (com a audácia de quem, ao guardá-los num livro, altera - sempre que queira - a forma como ele acaba só para nós).

O mais enigmático dos sonhos não passa por viverem guardados numa despensa. Mas por só descobrirmos que ela existe quando alguém, abraçando-nos sem perguntar porquê, os descobre e os solta. E, dessa forma, nos sossega quando mostra que o grande privilégio dos sonhos não passa por antecipar o futuro mas por deixar que ele aconteça.»

Eduardo Sá, psicanalista e escritor português
(dica da querida Catarina, que não acredita mas é uma poeta e tanto)

quarta-feira, 10 de junho de 2009

o que cada um tem por dentro

Ela tem, delegado, um nariz arrebitado, mas isso não é nada. A nariz arrebitado a gente resiste. Mas a ponta do nariz se mexe quando ela fala. A isso quem resiste? Eu não. Nunca pude resistir a mulher que quando fala a ponta do nariz sobe e desce. Muita gente nem nota. É preciso prestar atenção, é preciso ser um obsessivo como eu. O nariz mexe milímetros.

Para quem não está vidrado, não há movimento algum. Às vezes só se nota de determinada posição, quando a mulher está de perfil. Você vê a pontinha do nariz se mexendo, meu Deus. Subindo e descendo. No caso dela também se via de frente. Uma vez ela reclamou, "Você sempre olha para a minha boca quando eu falo." Não era a boca, era o nariz. Eu ficava vidrado no nariz. Nunca disse pra ela que era o nariz. Delegado, eu sou louco? Ela ia dizer que era mentira, que seu nariz não mexia. Era até capaz de arranjar um jeito de o nariz não mexer mais.

Mas a culpa, delegado, é da inconstância humana. Ninguém é uma coisa só, nós todos somos muitos. E o pior é que de um lado da gente não se deduz o outro, não é mesmo? Você, o senhor, acreditaria que um homem sensível como eu, um homem que chora quando o Brasil ganha bronze, delegado, bronze? Que se emocionava com a penugem nas coxas dela? Que agora mesmo não pode pensar na ponta do nariz dela se mexendo que fica arrepiado? Que eu seria capaz de atirar um dicionário na cabeça dela? E um Aurelião completo, capa dura, não a edição condensada? Mas atirei. Porque ela também se revelou. Ela era ela e era outras. A multiplicidade humana, é isso. A tragédia é essa. Dois nunca são só dois, são dezassete de cada lado. E quando você pensa que conhece todos, aparece o décimo oitavo. Como eu podia adivinhar, vendo a ponta do narizinho dela subindo e descendo, que um dia ela me faria atirar o Aurelião completo na cabeça dela? Capa dura e tudo? Eu, um homem sensível?

Eu deveria ter desconfiado que o nariz arrebitado não era tudo. Que ela tinha me enganado com seu jeitinho de falar, com o apelido que me deu, "Guinguinha", veja o senhor, "Guinguinha", que só depois eu descobri era o nome de um cachorro que ela teve quando era pequena e morreu atropelado. E que ela tinha aquelas outras por dentro. Tudo bem, eu também tenho outros por dentro. Nós já estávamos juntos um tempão quando ela descobriu que eu sabia imitar o Silvio Santos. Sou um bom imitador, o meu Romário também é bom, faço um Lima Duarte passável, mas ninguém sabe, é um lado meu que ninguém conhece. Ela ficou boba, disse "Eu não sabia que você era artista". Também sou um obsessivo. Reconheço. A obsessão foi a causa da nossa briga final.

Tenho outros por dentro que nem eu entendo, minha teoria é que a gente nasce com várias possibilidades e quando uma predomina as outras ficam lá dentro, como alternativas descartadas, definhando em segredo. E, vez que outra, querendo aparecer. Tudo bem, viver juntos é ir descobrindo o que cada um tem por dentro, os dezassete outros de cada um, e aprendendo a viver com eles. A gente se adapta. Um dos meus dezassete pode não combinar com um dos dezassete dela, então a gente cuida para eles nunca se encontrarem. A felicidade é sempre uma acomodação. Eu estava disposto a conviver com ela e suas dezassete outras, a desculpar tudo, delegado, porque a ponta do seu nariz mexe quando ela fala.

Mas aí surgiu a décima oitava ela. Nós estávamos discutindo as minhas obsessões. Ela estava se queixando das minhas obsessões. Não sei como, a discussão derivou para a semântica, eu disse que 'obsedante' e 'obcecante' eram a mesma coisa, ela disse que não, eu disse que as duas palavras eram quase iguais e ela disse 'Rará', depois disse que 'obcecante' era com 'c' depois do 'b', eu disse que não, que também era com 's', fomos consultar o dicionário e ela estava certa, e aí ela deu outra risada ainda mais debochada e eu não me aguentei e o Aurelião voou. Sim, atirei o Aurelião de capa dura na cabeça dela. A gente aguenta tudo, não é delegado?, menos elas quererem saber mais do que a gente. Arrogância intelectual, não!

Luis Fernando Verissimo
Zero Hora, 10/05/09

sexta-feira, 5 de junho de 2009

aula de desenho

Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.

Maria Esther Maciel

terça-feira, 2 de junho de 2009

sair para as varandas de si mesmo

PENSAR É TRANSGREDIR

Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos.
Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.
Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.
Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: "Parar pra pensar, nem pensar!"
O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.
Sem ter programado, a gente pára pra pensar.
Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.
Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.
Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.
Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.
Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos.
Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.
Parece fácil: "escrever a respeito das coisas é fácil", já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.
Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança.
Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.
Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.

Lya Luft

segunda-feira, 1 de junho de 2009

13ºC.

LATE EL OTOÑO

En las esquinas de los árboles

las hojas caen como caen las pestañas de este día

En las esquinas del barrio los hombres barren el verano

como hormigas hambrientas de un antiguo verdor

Las hojas están casi secas y parecen caricias

Entre páginas de cuerpos

lenguas crujientes encendiéndose en los pechos

Late el otoño bajo las camisas

Los hombres se abrigan porque los árboles se desnudan

En la esquina del corazón también cae

la última torcaza que apedreamos hace tiempo.

(Gustavo Caso Rosendi)

Obs.: Precisa avisar lá em cima que frio tem limite. 13 graus em plena segunda-feira, após uma noite mal dormida, beira a sacanagem. O consolo é que o sol está todo feliz e estatelado, fazendo um belo contraste com o leve azul do céu. Seguimos com esperanças novinhas em folha, projetos familiares, saudades imensas e noites que prometem. Triste pelo avião que desapareceu com 228 pessoas a bordo e ia para onde eu gostaria de estar neste momento, Paris. C´est la vie - ou quelque chose d´autre. Boa semana gelada pra todo mundo! :-)

quinta-feira, 28 de maio de 2009

quando a paz invade o coração

O hábito de estar aqui agora
aos poucos substitui a compulsão
de ser o tempo todo alguém ou algo.

Um belo dia (por algum motivo
é sempre dia claro nesses casos)
você abre a janela, ou abre um pote

de pêssegos em calda, ou mesmo um livro
que nunca há de ser lido até o fim
e então a idéia irrompe, clara e nítida:

É necessário? Não. Será possível?
De modo algum. Ao menos dá prazer?
Será prazer essa exigência cega

a latejar na mente o tempo todo?
Então por quê?
E neste exato instante
você por fim entende, e refastela-se

a valer nessa poltrona, a mais cômoda
da casa, e pensa sem rancor:
Perdi o dia, mas ganhei o mundo.

(Mesmo que seja por trinta segundos)

PAULO HENRIQUES BRITTO

terça-feira, 26 de maio de 2009

coisa mais linda....

Para uma menina com uma flor
Vinícius de Moraes

Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você quando sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, como uma santa moderna, e anda lento, a fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara– na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando sem voz aquele pedaço em que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora – tão purinha entre as marias-sem-vergonha – a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos – eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações – porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

la felicidad está hecha de pequeñas cosas...



Postal pintada a mano con relieve. Circulada de Buenos Aires a Barcelona el 7 de diciembre de 1907.

"La dicha de la vida consiste en tener siempre algo que hacer, alguien a quien amar y alguna cosa que esperar."
Thomas Chalmers

quinta-feira, 14 de maio de 2009

oportunidade sublime.

“... Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor. Com todo o seu ser, com todas as suas forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar. Mas o tempo de aprendizado é sempre um longo período de exclusão de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e se unir com uma outra pessoa. (Pois o que seria uma união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado?) O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe. Apenas neste sentido, como tarefa de trabalhar em si mesmos (“escutar e bater dia e noite”), as pessoas jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é dado. A absorção e a entrega e todo tipo de comunhão não são para eles (que ainda precisam economizar e acumular por muito tempo); a comunhão é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana quase não seja o bastante....”

RILKE, Rainer Maria | in "Cartas a um jovem poeta"

sábado, 9 de maio de 2009

una palabra entonces, una sonrisa bastan

Me gustas cuando callas porque estás como ausente,
y me oyes lejos, y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran velado
y parece que un beso te cerrara la boca.

Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerge de las cosas, llena de alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolia.

Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrulo
Y me oyes desde lejos y mi voz no te alcanza:
déjame que me calle com el silencio tuyo.

Déjame que te hable también con tu silencio.
Claro como una lámpara, simple como un anillo
Eres como la noche, callada y constelada
Tu silencio és de estrella, tan lejano y sencillo.

Me gusta cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como se hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto

Pablo Neruda (n. Parral, Chile 1904; m. 23 Set 1973 em Santiago)
in Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada
(Publicações Dom Quixote)

domingo, 3 de maio de 2009

fascínio de viver

Eu não consigo ficar indiferente a um belo poema. Ainda bem. Segue um exemplar digno de aplausos:

À revelia de pretéritas lembranças,
um bafo de terra molhada
devolve-me enredos de fins de tarde
que me sugerem os panos coloridos
com que, em criança, fazia as saias das bonecas.
O verso e o reverso de um concêntrico imaginário.
A atmosfera impregnada do meu fascínio de viver.
E pego na fala de Zaratustra para perguntar:
Que temos de comum com o botão de rosa
que verga sob o peso de uma gota de orvalho?
De que matéria somos feitos
que nos torna comovidos e inocentes
perante a promessa da ternura?
Sei o difícil jogo de viver.
Os meus desejos são como as areias
que o vento levanta sem levar para longe.
Nenhuma linguagem explica o devir das paixões.

De Outono: lugar frágil, 1993

(Graça Pires)

domingo, 26 de abril de 2009

vi, gostei e recomendo

Das últimas e raras visitas ao cinema, os filminhos mais marcantes foram:

- O Visitante (estou amando música africana por causa deste filme, e este é apenas um dos muitos atrativos)
- A Esquiva (aborrecentes franceses, apaixonadinhos e que gritam muito... é fofíssimo, vale a pena ver)
- A Troca (drama dirigido por Clint Eastwood com Angelina Jolie, agonia do começo ao fim)
- Palavra Encantada (documentário ótimo sobre a relação da música com a poesia)
- Quem quer ser um milionário? (sessão da tarde com dancinha tosca no final, não acho que mereceu todos aqueles prêmios, mas ainda assim é um bom filme)
- Vicky Cristina Barcelona (Penélope Cruz arrasa como perturbada, amei este filme)

Em breve, muito em breve, verei O Curioso Caso de Benjamin Button e O Leitor, de uma forma assim bem caseira, com pipoca de microondas e jogada no sofá, se é que você me entende. E A Janela (argentino que estreou esta semana) e O Presságio (com Nicolas Cage) já foram eleitos como 2 bons motivos pra sair de casa e enfrentar a boa e velha sala escura.

Em vídeo: Quero muito ver O Último Tango em Paris - vergonhoso eu gostar tanto de cinema e nunca ter visto este filme.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

ah, se o dinheiro desse...

...eu iria ver uns filminhos em Cannes, agora em maio, descansaria um pouco em junho e depois aproveitaria MUITO os debates literários, palestras e a agitação cultural de Parati, na FLIP. Que vai ter, dentre outros feras, a ilustre presença de Chico Buarque, my love. ;)

Mas como ainda c'est ne pas posible fazer nem um nem outro, fico por aqui mesmo, observando o movimento e aproveitando toda a parte que me cabe neste latifúndio.

Sensacional o poster desta edição do Festival de Cannes:



Segundo informações do Blog Uol Cinema, da Folha de S. Paulo, o poster traz uma imagem de "A Aventura" (1962), de Michelangelo Antonioni. É a silhueta de uma mulher, a atriz Monica Vitti, que abre uma porta para um grande jardim. No mesmo comunicado à imprensa, os organizadores foram mais poéticos: "Uma misteriosa silhueta feminina, colhida no meio de um movimento de abrir uma janela para o cinema e nos convidando para um sonho".

terça-feira, 21 de abril de 2009

Soneto de Abril

Agora que é abril, e o mar se ausenta,
secando-se em si mesmo como um pranto,
vejo que o amor que te dedico aumenta
seguindo a trilha de meu próprio espanto.

Em mim, o teu espírito apresenta
todas as sugestões de um doce encanto
que em minha fonte não se dessedenta
por não ser fonte d'água, mas de canto.

Agora que é abril, e vão morrer
as formosas canções dos outros meses,
assim te quero, mesmo que te escondas:

amar-te uma só vez todas as vezes
em que sou carne e gesto, e fenecer
como uma voz chamada pelas ondas.

Lêdo Ivo, in “Acontecimento do Soneto”

quarta-feira, 8 de abril de 2009

08 de abril...



Feliz aniversário. Pra mim. Acho que fui precoce e tive a crise dos 30 aos 29... Após a tempestade, tenho a firme certeza que ventos bons e leves estão por vir. Agora sim, podemos dizer que o ano começou pra valer. rs

pq a vida é a-go-ra

Não é preciso consenso
nem arte,
nem beleza ou idade:
a vida é sempre dentro
e agora.
(A vida é minha
para ser ousada.)

A vida pode florescer
numa existência inteira.
Mas tem de ser buscada, tem de ser
conquistada.

(Lya Luft)

quinta-feira, 2 de abril de 2009

"Estou sempre lembrando de um dos ensinamentos da minha guru sobre felicidade. Ela diz que as pessoas tendem a pensar universalmente que a felicidade é um golpe de sorte, algo que talvez lhe aconteça se você tiver sorte o suficiente, como o tempo bom. Mas não é assim que a felicidade funciona. A felicidade é consequência de um esforço pessoal. Você luta por ela, faz força para obtê-la, insiste nela e algumas vezes viaja o mundo à sua procura. Você precisa participar o tempo todo das manifestações de suas próprias bênçãos. E, uma vez alcançado o estado de felicidade, nunca deve relaxar em sua manutenção, deve fazer um esforço sobre-humano para continuar para sempre nadando contra a corrente rumo a esta felicidade, para permanecer flutuando em cima dela. Se não fizer isso, seu contentamento interno vai se esvair. É muito fácil rezar quando se está passando por um momento difícil, mas continuar a rezar quando a sua crise já passou é como um processo de selamento, que ajuda a sua alma a se aferrar às coisas boas que conquistou".

Elizabeth Gilber, em "Comer, Rezar, Amar"

terça-feira, 31 de março de 2009

a volta do malandro

2009 tem tudo para ser um ótimo ano para o meu amado Chico Buarque. Acaba de lançar o livro Leite Derramado, que até então tem sido bem recebido pela crítica. O filme baseado em seu livro Budapeste chegará aos cinemas no próximo dia 22 de maio. Dirigido por Walter Carvalho (que fez Cazuza) e com o ator Leonardo Medeiros no papel principal, eu acho que o filme tem grandes chances de ser uma obra-prima, assim como o livro.

Abaixo, a reprodução do primeiro capítulo de Leite Derramado, também disponível no hot site do livro.

Apreciem! Eu fiquei com vontade de ler... :-)

***

Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes no areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu avô. Mas se você não gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármore com bidês, vários salões com espelhos venezianos, estátuas, pé­direito monumental e telhas de ardósia importadas da França. Há palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Brasília. Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e consultórios. Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia. Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí? Acabou a novela, o jornal, o filme, não sei por que deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que esse chuvisco me encubra a voz, e eu não moleste os outros pacientes com meu palavrório. Mas aqui só há homens adultos, quase todos meio surdos, se houvesse senhoras de idade no recinto eu seria mais discreto. Por exemplo, jamais falaria das putinhas que se acocoravam aos faniquitos, quando meu pai arremessava moedas de cinco francos na sua suíte do Ritz. Meu pai ali muito compenetrado, e as cocotes nuinhas em postura de sapo, empenhadas em pinçar as moedas no tapete, sem se valer dos dedos. A campeã ele mandava descer comigo ao meu quarto, e de volta ao Brasil confirmava à minha mãe que eu vinha me aperfeiçoando no idioma. Lá em casa como em todas as boas casas, na presença de empregados os assuntos de família se tratavam em francês, se bem que, para mamãe, até me pedir o saleiro era assunto de família. E além do mais ela falava por metáforas, porque naquele tempo qualquer enfermeirinha tinha rudimentos de francês. Mas hoje a moça não está para conversas, voltou amuada, vai me aplicar a injeção. O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensa­mentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa. O médico plantonista vai entrar apressado, tomar meu pulso, talvez me diga alguma coisa.
Um padre chegará para a visita aos enfermos, falará baixinho palavras em latim, mas não deve ser comigo. Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto­e­branco.

saudade da saudade

MUITAS CHANCES NUMA ÚNICA CHANCE
Fabrício Carpinejar

Qualquer coisa que estraga em sua casa, minha mãe chama o Leonel.

Telhados, ar condicionado, piso, rachaduras, ventiladores de teto. Ele mora na mesma quadra e nunca demora a vir.

Enquanto cimentava a escada do pátio, Leonel levantava altivamente o rosto quando provocava a figura materna. Atento, gargalhava a cada disparo de afeto.

Ao guardar a pá e o carrinho de mão, confessou:
- Minha mãe morreu quando nasci. Vejo vocês e tenho saudade da saudade.

Partilho semelhante inveja. Quando vou sozinho a um restaurante, não canso de espiar as conversas de casais. Eu me interesso pelos assuntos mais frívolos. Ponho a mão no queixo, o guardanapo nos joelhos e admiro o espetáculo da intimidade. O amor que pode ser amor ali, acontecendo em minha frente entre descrições de trabalho e confissões de meio-dia. O amor ali, camuflado e prosaico, mas devidamente forte para atravessar a morte e prometer vida eterna mesmo que não tenha eternidade depois. Mesmo que um dos dois sequer acredite em Deus.

Há gente que faz o contrário de Leonel. Mata o amor no momento em que ele nasce.

Pois não pensem que todos querem um amor grande. Reclamam, mas não querem.

Há gente que diminui o amor de propósito para não sofrer com ele. Elabora uma versão para provar que ele não existiu. Deixam o amor escapar, sumir, desaparecer para não se atrapalhar. Há gente que até se convence que aquele amor grande não era devidamente grande.

Há gente que pede um amor pequeno, doméstico, que não desestruture seus hábitos. Um amor anão de jardim, um amor de balcão, de pé, rápido. Um amor minúsculo, sem acento, que não rivalize o amor próprio. Que esteja próximo mas não fale alto, que esteja perto mas não influencie, que seja chamado quando se tem vontade e seja desfeito quando não serve mais.

O amor grande não traz uma felicidade constante - é a principal cilada -, traz uma felicidade irregular, intensa, atávica, que voa muito mais alto do que o conforto. Na estabilidade, é fácil sair da felicidade e da tristeza. No amor, descobrimos o quanto podemos ser felizes, e incomoda ter que buscar mais felicidade. Descobrimos o quanto podemos também ser tristes, e incomoda que não sairemos da tristeza sem que o amor volte.

Há gente que não tem esperança para se arrepender. Que sente ciúme de não ter sido assim antes e não se permite não ser mais como antes. Que vai terminar o amor para não se mostrar incompetente. Que prefere adiar o julgamento a se abrir para a verdade. Que não perdoa no momento de se perdoar. Um amor miúdo vai ao psiquiatra de manhã e termina a relação de noite. O amor grande termina com psiquiatra de manhã e se reconcilia à noite.

Porque o amor grande é uma insanidade lúcida, nem os melhores amigos entendem, é detratar e se retratar com mais freqüência do que se gostaria. Amor é o excesso de responsabilidade, de encargo, confiado a quem nos acompanha. Oferecemos o que não conseguimos alcançar.

Sempre seremos menores do que ele, já que é o único que cresce na extinção. Minha mãe costuma dizer que casamos quando encontramos uma solidão maior do que a nossa - só assim saímos da própria solidão.

Há gente, sim, que muda de amor para não mudar de opinião, que muda de homem para não mudar sua rotina, que manda onde não vigora poder e dominação. Que culpa o amor por não dar conta dele, que ama já pedindo desculpa por não amar.

O amor grande não é um grande amor.

Há gente, eu conheço, que desperdiça a chance do amor grande porque há apenas uma chance para amar grande. Muitas chances dentro de uma chance. O resto são disfarces, suturas, apoios.

Amor grande seria insuportável duas vezes nesta vida. Ou a gente se apequena para receber esse amor ou permanece se engrandecendo para não aceitá-lo.

Fonte: Blog do Carpinejar

sexta-feira, 27 de março de 2009

hoje e sempre

A Carta
Djavan
Composição: Djavan/ Gabriel O Pensador

Não vá levar tudo tão a sério
Sentindo que dá, deixa correr
Se souber confiar no seu critério
Nada a temer
Não vá levar tudo tão na boa
Brigue para obter o melhor
Se errar por amor Deus abençoa
Seja você
(...)

quarta-feira, 25 de março de 2009

o teu destino em outro mar

enquanto resistirem as asas.

O vôo

Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti.
Não indagues se nossas estradas, tempo e vento, desabam no abismo.

Que sabes tu do fim?
Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas.

Conserva a ilusão de que teu vôo te leva sempre para o mais alto.
No deslumbramento da ascensão,
se pressentires que amanhã estarás mudo,
esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta.

Canta!
Canta para conservar uma ilusão de festa e de vitória.

Talvez as canções adormeçam as feras que esperam devorar o pássaro.

Desde que nasceste não és mais que um vôo no tempo.
Rumo do céu?

Que importa a rota.
Voa e canta, enquanto resistirem as asas.

Menotti Del Picchia

segunda-feira, 23 de março de 2009

put a smile on that face

Há 4 anos trabalho com a organização dos eventos e a comunicação de uma associação para executivos financeiros. É um trabalho gostoso, sem rotina e muito divertido. Pesado sim, mas extremamente recompensador. Com este trabalho percebi que amo trabalhar com e pelas pessoas, sem dúvida alguma são elas que me fazem ficar lá por tanto tempo. Me apeguei e me afeiçoei a todos de tal forma que a possibilidade de um dia não vê-los mais me dá um friozinho no estômago e uma ponta de tristeza. Falo dos queridos que trabalham diretamente comigo e dos diretores e demais associados. Todos me conhecem e reconhecem o trabalho exaustivo da Sede. Este feedback direto e sincero é a melhor coisa do mundo. Quando vem acompanhado por um abraço e um sorriso então, me faz perder o rumo de tanta alegria.

Tudo isso porque acabo de retornar de um congresso anual que consumiu meses e dias de trabalho. O resultado foi maravilhoso. Aprendi um bocado, ri bastante, recebi muuitos abraços e volto com a certeza de que continuo amando fazer o que faço. Energias renovadas para alguns meses de trabalho pesado? Sem dúvida alguma que sim. Há tempos não me sentia tão bem e tão disposta. Como diz aquela canção do Walter Franco que eu amo, "Tudo é uma questão de manter/ a mente quieta/ a espinha ereta/ e o coração tranquilo."

***

sábado, 14 de março de 2009

O céu de um poema

Hoje, 14 de março, é o Dia Nacional da Poesia. A minha singela homenagem com um exemplar que conheci outro dia e gostei bastante:


Canto de Ofício

A cada dia, por ser hoje,
Eu te agradeço.
Por esse quarto à meia luz
E outros mundos,
Por esse gosto de amêndoa
E outros prazeres.

Quem quer que sejas tu
E onde estiveres,
Sob qualquer face
Que me apareças,
Assim é.

Pela incerteza essencial
Sobre mim mesma,
E estas palavras
Desde há pouco sem proveito,
Entranha, mistério, vereda
- Eu agradeço.

A cada noite inaugural
E derradeira,
Que me sustém
Não menos que o suficiente,
Bendito o fruto, o sal, o chão
E este silêncio.

Fundo de ravina o meu lugar,
Se já não creio.
Alto de um monte, se resisto.
E descrendo, resistindo,
Eu agradeço.

Que me possua o antro
Dos meus edifícios,
Como a pedra ordinária
É possuída
Por sóis e luas
Em seu tempo de maré.

Que eu me refaça
De quanto tenha desistido
Como a dizimação de um povo
No testemunho dos vivos.

E que eu envelheça
Par a par com esta casa,
Debaixo do musgo e da poeira,
O corpo palpitando ainda,
Mas num insensível batimento.

Por tudo o que se eleva
Numa onda
Logo se quebrando
Junto à espuma,
Pelo que no adeus se perpetua,
Sim, louvado seja.

Embora muito fique por saber
Das letras e dos números,
E tanto por dizer
Sobre o mal e a loucura,
Embora o rosto penso,
O grito, os pés inúteis.

Quão breve o momento
E quão vasto seu milagre.
Os favores da pele,
O céu de um poema,
A benção do pão e da água.

A benção, apesar
Do irremediável olho cego,
Das almas perseguidas
E do aborto solitário.

Porque aqui se chega,
A este dia e a esta luz
E é tão raro aceitá-lo.
Porque daqui se vai.

O adágio,
A flor do ourives,
O vermelho da China,
Um giro de bailarina,
Graças a ti, todas as artes.

Por esse vinho
E seus quinze outonos.
Pelo descanso da terra.
Por essa terra.

Mariana Ianelli

segunda-feira, 2 de março de 2009

voltando...

... aos poucos, de leve, após mais um mês complicadinho. Mas depois dos dias difíceis teve a parte boa, que foi a viagem para Buenos Aires, foi maravilhosa, só faltou a baladinha, mas ainda assim um dos melhores carnavais que já passei, sem um ziriguidum siquer e com muuuita risada, cultura e arquitetura histórica, chicos muy guapos (é de passar mal) y otras coisitas más... :)

"Olhe, tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras.
Sou irritável e firo facilmente.
Também sou muito calmo e perdôo logo.
Não esqueço nunca.
Mas há poucas coisas de que eu me lembre."

Clarice Lispector

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

e então que seja leve... quase natural...

"É assim mesmo - eu disse. - O mundo fora da minha cabeça tem janelas, telhados, nuvens, e aqueles bichos brancos lá embaixo. Sobre eles, não te detenhas demasiado, pois correrás o risco de transpassá-los com o olhar ou ver neles o que eles próprios não vêem, e isso seria tão perigoso para ti quanto para mim violar sepulcros seculares, mas, sendo uma borboleta, não será muito difícil evitá-los: bastará esvoaçar sobre as cabeças, nunca pousar nelas, pois correrás o risco de ser novamente envolvida pelos cabelos e reabsorvida pelos cérebros pantanosos e, se isso for inevitável, por descuido ou aventura, não deverás te torturar demasiado, de nada adiantaria, procura acalmar-te e deslizar para dentro dos tais cérebros o mais suavemente possível, para não seres triturada pelas arestas dos pensamentos, e tudo é natural, basta não teres medos excessivos - trata-se apenas de preservar o azul das tuas asas".

Caio Fernando Abreu

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A Sombra de Vinicius

Novas edições, estudos e poemas antes inéditos em livro deixam para trás a imagem do “poetinha”, mostrando um autor em que a paixão se misturava com tumultos interiores
Por Almir de Freitas

Diminutivos servem para identificar, como se sabe, coisas de pequeno porte ou, por extensão, coisas pelas quais temos carinho. Em certo sentido, as duas formas se conjugam no equívoco que fez com que Vinicius de Moraes passasse à história da literatura brasileira como "poetinha". Quase como a dizer: gostamos muito dele, de seus versos sobre o amor e a paixão - mas poetas sérios, "poetões" mesmo, são os outros. Para certa crítica acadêmica, o existencialismo prosaico de Carlos Drummond de Andrade, o lirismo de Manuel Bandeira e os versos duros da poesia engajada de João Cabral de Melo Neto encerram tudo o que de melhor e mais diverso o modernismo poderia produzir. A verdade, contudo, é que o cânone modernista não tinha como enquadrar a poesia de Vinicius, construída numa trajetória absolutamente singular, que foi das formas mais tradicionais da poesia ao trabalho como letrista da bossa nova.
As reedições da obra de Vinicius, publicadas pela Companhia das Letras numa coleção coordenada pelo também poeta Eucanaã Ferraz, mostram que essas antigas amarras acadêmicas ficaram para trás. Acompanhadas de novos textos críticos, as edições revelam um poeta em que a intensidade da paixão se mesclava com tumultos interiores, características que refletiam uma personalidade desde sempre atormentada e sujeita a frequentes períodos de depressão (leia texto na pág. 28). No conjunto da vida e da obra, revelam-se os matizes de um poeta que estava longe da imagem limitada atribuída a ele no imaginário da literatura brasileira — a de um homem com um copo de uísque na mão e um olho nas mulheres bonitas que passam no calçadão de um Rio de Janeiro edênico. Este, o tal "poetinha".
Poemas Esparsos, o mais recente volume da coleção, apresenta, em textos inéditos em livro, outros elementos desse Vinicius distante dos temas solares. Escritos entre os anos 30 e 70, os poemas compreendem todas as "fases" do poeta — desde a da juventude, em que ele era influenciado por um simbolismo de extração européia, marcada por um catolicismo atormentado, até a posterior, em que a sua poesia ganhou mais leveza, tornou-se mais "modernista". Se as diferenças entre as duas fases são evidentes e inegáveis, a divisão rígida entre ambas acabou ocultando a persistência dos elementos sombrios da primeira na segunda, num poeta que, além de tudo, acabou sendo eclipsado pelo letrista. Trabalho, aliás, que não pode ser confundido com sua obra poética — outro equívoco comum.
Nas páginas que seguem, estão trechos de alguns desses poemas. Nem todos os textos do livro são inéditos, mas seguem sendo contundentes em revelar a obra de poeta mais inteiro, tão complexo quanto os elementos simbólicos e valores morais envolvidos — sexo e morte, culpa e prazer — na metamorfose de "poeta maldito" em "libertino". Sem esses elementos, não se pode compreender a profundidade da paixão pela qual o poeta foi reconhecido. Elementos que podem explicar muito, por exemplo, os versos de Soneto de Fidelidade (1946), talvez os mais famosos de Vinicius: "Quem sabe a morte, angústia de quem vive/ Quem sabe a solidão, fim de quem ama/ Eu possa me dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure".

Fonte: Revista Bravo - Jan/2009

Uma Alma Duplicada

Oscilando entre o prazer e o desamparo, Vinicius viveu os seus nove casamentos como um “escravo da paixão”, para quem o amor, mais que alegria, era fardo
Por José Castello

Vinicius de Moraes, o poeta da paixão, foi também o poeta do desespero. Sob a máscara do artista feliz, em eterno galanteio com a vida, escondeu-se, durante 67 anos, um homem atormentado, para quem o amor foi não só alegria, mas fardo, e a vida, uma sucessão de decepções.
Comecei a trabalhar em minha biografia de Vinicius de Moraes no início dos anos 90, uma década depois da morte do poeta. A única vez em que o vi, em fins dos anos 70, contudo, me bastou para perceber, não sem dificuldades, pequenos sinais desse Vinicius desconhecido. Eu era repórter de Veja e o poeta estreava um show no Rio. A entrevista foi agendada para a hora do almoço. Habituado a trocar a noite pelo dia, Vinicius me fez esperar por quase duas horas. Quando enfim apareceu, os olhos ainda esbugalhados pela noite, a voz lenta e rouca, custei a reconhecê-lo. Era difícil aceitar que aquele homem que me tratava com impaciência e desatenção fosse, de fato, Vinicius de Moraes. Mas era.
A entrevista foi um desastre. Sim, consegui meia dúzia de informações, e algumas declarações banais, que me renderam um texto discreto para a revista. Levei de volta comigo, porém, a imagem de um homem em contínuo desalinho com o mundo. Mais de uma década depois, foi dela que parti para escrever minha biografia. Ainda hoje, 16 anos depois de publicá-la, a figura desse Vinicius atormentado e em descompasso com o mundo me incomoda. Aos admiradores de canções suaves como Garota de Ipanema e Minha Namorada, ela parece não só falsa, mas absurda. Aos leitores que se habituaram à leveza de poemas como A Balada das Meninas de Bicicleta ou a Feijoada à Minha Moda, causa estranheza, ou mesmo repulsa.
Custo a admitir, mas a vida de Vinicius de Moraes foi uma linha irregular em que os grandes momentos de prazer e euforia se revezaram com descidas íngremes rumo à tristeza e ao desamparo. Os médicos de hoje, provavelmente, o rotulariam de "bipolar". Para além de qualquer diagnóstico, Vinicius foi, sim, um homem de alma duplicada. A paixão pela vida tinha, como avesso, íngremes descidas ao inferno. Quando rapaz, Vinicius desejou ser um poeta do talhe do francês Arthur Rimbaud. Foi um leitor apaixonado de Uma Estação no Inferno e, enquanto escrevia os primeiros poemas, olhava-se no espelho e via Rimbaud. Os versos torturados de seu primeiro livro, O Caminho para a Distância, escrito aos 19 anos, confirmam essa semelhança.
Bem antes ainda, em meados dos anos 20, quando ainda usava calças curtas, Vinicius rascunhou seus primeiros poemas. Nos corredores do Colégio Santo Inácio, escondia os versos nos bolsos do uniforme, comportava-se como um criminoso. Certo dia, aproveitou a companhia solitária de um colega e desabafou: "Tenho um segredo". Com a voz vacilante, como se revelasse um crime, continuou: "Eu escrevo poemas". Desconhece-se a resposta do amigo de sala. Mas, desde então, a poesia passou a ser, para Vinicius de Moraes, um objeto sombrio e íntimo.
Em 1933, quando publica O Caminho para a Distância, o precoce Vinicius, com 20 anos incompletos, se forma em direito. Na faculdade do Catete, passa a frequentar o grupo de alunos católicos liderado por Octavio de Faria, o futuro romancista, autor dos 13 volumes obscuros de A Tragédia Burguesa. A atmosfera de culpa e de trevas toma conta de sua alma. Um de seus poemas de juventude chegou a ser publicado em A Ordem, revista católica que, fundada por Jackson de Figueiredo, servia de porta-voz da ortodoxia cristã.
Nos primeiros versos de Vinicius de Moraes, sinal da tristeza que nunca mais o deixaria, a mulher surge como uma figura inocente e inatingível, enquanto o homem não passa de um ser inferior e sujo, indigno de sua companhia. Vista como um fardo, a masculinidade aprisiona os homens em impulsos carnais e arroubos de violência. Ser homem é "sofrer" desse destino. É disso que tratam seus primeiros poemas.
No segundo livro, Forma e Exegese (1935), a imagem do poeta atormentado se aprofunda. Em um poema como O Escravo, ele descreve: "Aqui vejo coisas que a mente humana jamais viu/ Aqui sofro frio que corpo humano jamais sentiu". Há um tanto de retórica nesse jovem que dramatiza o mundo e se vê como uma vítima. Em O Outro, ele diz: "Eu sinto sobre o meu ser uma presença estranha que me faz despertar angustiado".
A nuvem negra só se dissipa quando, em 1939, Vinicius conhece sua primeira mulher, Beatriz Azevedo de Mello, a Tati. Independente, liberal e pragmática, Tati era, naquele momento, uma leitora entusiasmada dos modernistas de 22. O primeiro sinal da guinada íntima de Vinicius está em seu interesse pelo jornalismo. Mas o conflito interior persiste. Quando começou a escrever crítica de cinema, para o jornal A Manhã, em 1941, por exemplo, Vinicius se tornou um ardoroso defensor do cinema mudo — que via, naquele momento, contaminado pelo "perigo da voz". A repugnância ao cinema falado será, mais tarde, superada. A marca dessa metamorfose toma forma em um poema como a Carta aos Puros, escrito em Montevidéu, no Uruguai, em fins dos anos 50, no qual Vinicius combate, com vigor, os "homens sem sol" e também "sem sal", que fogem da realidade. Combate a si mesmo.


Triste Bahia

Num espaço de 41 anos, entre 1939, ano em que se casou com Tati, e 1980, ano em que morreu, Vinicius viveu uma série de nove casamentos oficiais, afora as incontáveis paixões informais. Viveu, sempre, subjugado pela ideia da paixão. Escravo da paixão — que definiu como um amor que é "eterno enquanto dura" —, quando sentia que ela esfriava, Vinicius não pensava duas vezes: rompia com a amada. Tomou a iniciativa de se separar de sete de suas nove mulheres, confirmando a ideia de uma delas, segundo a qual o poeta, mais que amar as mulheres, amava a condição de apaixonado.
O fato de ser ele o autor das rupturas afetivas não o poupou, porém, da depressão que a elas se seguia. Entre os casamentos, Vinicius afundava na melancolia e se perdia na busca frenética de um novo grande amor. O amor secreto por Regina Pederneiras, arquivista do Itamaraty a quem dedicou a célebre Balada das Arquivistas, ainda quando era casado com Tati, se torna um modelo para as relações paralelas com que sempre temperou sua teoria da paixão. Entre as nove mulheres oficiais, apenas Lucinha Proença, a quinta, ao perceber que a paixão esfriava, foi mais rápida que ele e anunciou o rompimento. Talvez por isso tenha sido a única paixão (não falo de amor) que nunca se dissipou. Nona e última, a jovem Gilda Mattoso perdeu Vinicius para a morte.
Nos breves, mas infernais, intervalos de solidão, ele se apegava à bebida e à noite. Nessas horas, fazia uso de recursos enfáticos, chegando, até mesmo, a evocar (ou a blefar com) a ideia romântica do suicídio. Mas não só a ausência de paixão o levou a esses extremos. Também a ausência de liberdade. Em Portugal, a notícia da decretação do AI-5 o pegou nos bastidores de um teatro. Atordoado, gritava pelos camarins: "Eu me mato! Eu me mato!". Baden Powell, que o acompanhava no show, tentava acalmá-lo. "Pode me prender, eu quebro as lentes dos óculos e corto os pulsos!", o poeta insistia. Só um abraço longo do parceiro amansou sua fúria.
A dor vivida no ano de 1969, quando foi exonerado do Itamaraty, por "problemas de comportamento", e não por motivos políticos, deixou cicatrizes profundas. O célebre bilhete do general Costa e Silva ao chanceler Magalhães Pinto trazia palavras grosseiras: "Demita-se esse vagabundo". A vida dupla de diplomata e showman era inaceitável para os padrões da ditadura militar. Em março de 1969, a célebre Comissão Câmara Canto, grupo secreto criado pelo AI-5 para realizar um expurgo no Itamaraty, decidiu, em um relatório confidencial, pela expulsão sumária de Vinicius da vida diplomática. Diz-se, porém, que, nesse documento, nem mesmo os detratores se abstiveram de fazer elogios a sua poesia.
Deprimido pela perseguição política, Vinicius só se recuperou quando conheceu a baiana Gesse Gessy, sua sétima mulher. Mudou-se para a praia de Itapuã, em Salvador. Passou a ser visto com longas batas brancas, ornamentos do candomblé, sandálias de hippie, publicando seus versos em precárias edições artesanais, à moda dos poetas da "poesia marginal". A Bahia era uma festa — mas havia tristeza naquela festa.
Mesmo as paixões fugidias e secretas, como a que viveu nos anos 50 com a escritora Hilda Hilst, carregam essa marca. Quando estava apaixonado, Vinicius não suportava a idéia de tristeza. Hilda gostava de recordar o dia em que os dois pararam para um almoço em um restaurante de beira de estrada especializado em cordeiros. Sentaram-se ao lado de uma janela. Do lado de fora, bem ao lado, uma ovelha pastava. "Vamos embora", Hilda lhe disse. "Não vou conseguir comer vendo pela janela o bicho que vou comer." Vinicius só se levantou a contragosto. Apaixonado, nada devia contrariar seu entusiasmo. Desencantado, o mundo se revirava e o sofrimento se espalhava por todos os lados.
As circunstâncias o levaram, tantas vezes, a expor esse lado obscuro, o que aconteceu, por exemplo, quando perdeu o pai, Clodoaldo. Vinicius, que estava no México, recebeu a notícia por telefone. O horror se estampou em um poema dolorido como Elegia na Morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, escrito pouco depois. O primeiro verso fala não só de sua tristeza, mas do sentimento de que ela o perseguia: "A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas".
Se a celebração da vida aparece em poemas célebres como Receita de Mulher ou na Balada das Duas Mocinhas de Botafogo, a confissão da tristeza se estampa em um poema dolorido, mas genial como Poética (II), que escreveu no Rio de Janeiro, em 1960. A abertura resume sua estratégia literária: "Com as lágrimas do tempo/ E a cal do meu dia/ Eu fiz o cimento/ Da minha poesia".
Nos anos do último casamento, com Gilda Mattoso, os sinais dessa tristeza se tornaram atordoantes. Com o passar do tempo, contudo, esse Vinicius deprimido e desesperado ficou esquecido sob a imagem luminosa do "poetinha". Avesso e direito de um mesmo poeta. Uma prova disso aparece no Soneto de Luz e Treva, em particular na dedicatória a Gesse Gessy: "Para a minha Gesse, e para que ilumine sempre a minha noite". A luz é das mulheres. Aos homens, mesmo aos poetas, resta sempre o martírio da escuridão.

JOSÉ CASTELLO é jornalista e escritor, autor da biografia Vinicius de Moraes — O Poeta da Paixão, entre outros livros.

Fonte: Revista Bravo - Jan/2009

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

e se...?

E se eu deixasse acontecer? Simples, gostoso, diariamente? Teria sido diferente se eu não tivesse apertado a tecla PAUSE naquele momento? Haveria uma continuidade, ou a novela da vida real (digna de Almódovar, vamos combinar) se consumiria e terminaria de qualquer forma? Há quem diga que sim, pela forma abrupta e visceral que começou, o único caminho possível seria o fim. Prematuro e indesejado, mas o fim. Mas há também os mais otimistas, que haviam previsto um final pra lá de feliz, beirando o sublime, repleto de coisas boas, com as pedras que existem em todas as trajetórias e mais algumas que acabamos carregando por bobeira mesmo. Às vezes me pergunto até que ponto e porque saboto a mim mesma e as minhas relações. Que necessidade idiota é essa de terminar relações antes mesmo que elas cresçam e possam mostrar a que vieram? Estou tentando entender o que se passa dentro de mim. Pode ser o medo da intimidade, de ser amada, de ser feliz. Pode ser. O medo é cruel e paralisa. Deve haver alguma estatística feita por estudiosos britânicos que diz que 35% da população mundial termina relacionamentos por medos infantis e desnecessários. Sei que preciso mudar e parar de agir assim. Deus, o universo ou seja lá o que for tem sido generoso e colocado pessoas muito especiais no meu caminho. A dúvida é: até quando? Será que um dia até Ele vai se cansar e dizer: Ok Camila, sua cota acabou. Fica pra próxima. Próxima vida. :-(

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

sobre anjos, ausências e partidas.

Infinitamente Pessoal

Pequenas Epifanias
Caio Fernando Abreu

E O ANJO pálido troca o mel pelo sal.

Começou a amanhecer. Não sei ao certo como soubemos que tinha começado a amanhecer: era tão escuro ali dentro que noite ou dia lá fora não faria a menor diferença. Por algumas frestas, frinchas — não importa—, tivemos certeza de que começara, claramente, a amanhecer. E por condicionamento, talvez, porque sempre com o amanhecer chega a hora de ir embora, começamos a ir embora. Feito vampiros às avessas — necessitados de luz, não de sombra.
Quando o tempo passasse um pouco mais, nos surpreendendo ainda juntos em outra madrugada, minha cabeça repetiria tonta e lúcida "Éramos tão pálidos, e nos queríamos tanto”. Éramos muito pálidos naquela primeira manhã entre as latas de lixo da rua deserta, caminhando em direção ao dia de hoje — mas ainda não nos queríamos com este enorme susto no fundo dos olhos despreparados de querer sem dor.
Lembro que olhando para cima, descobri entre o roxo e o rosa das nuvens um anjo também pálido, magro e de barba por fazer, vestido de negro, com um leve sorriso nos lábios, vertendo uma gota de mel sobre nossas cabeças. Não prestei atenção nele. Me deixava levar, guiado apenas pelo jardim que entrevia pelas frestas dos tijolos, nos muros-palavras erguidos entre nós, com descuido e precisão. Viriam depois, mais muros que os de palavras, muros de silêncio tão espesso que nem mesmo os demorados exercícios de piano, as notas repetidas e os dedos distendidos, conseguiriam derrubar.
Errei pela primeira vez quando me pediu a palavra amor, e eu neguei. Mentindo e blefando no jogo de não conceder poderes excessivos, quando o único jogo acertado seria não jogar: neguei e errei. Todo atento para não errar, errava cada vez mais. Mas durante as ausências, olhando então para cima e abrindo a boca, recebia em cheio na garganta as gotas de mel do jarro de lata que aquele anjo pálido trazia ao ombro. Embora me recusasse a ver que o anjo parecia cada vez mais sombrio. Incapaz de perceber que em seu leve sorriso, bem no canto da boca, começava a surgir uma marca de sarcasmo, feito um tique cruel.
Passaram-se muitos dias. A lua deu mais de uma volta completa no Zodíaco. Ultrapassou Sagitário e caminhou até Áries, completando seu triângulo de fogo e paixão. Bati as mãos contra o muro, procurando brechas. Não havia mais. Espatifei as unhas, gritei por uma resposta qualquer. Nem uma veio de volta. Olhei para fora de mim e não consegui localizar ninguém no meio das vibrações da cidade suja. Olhei para dentro de mim e só havia sangue. Derramado, como nas cirandas.

Queria acordar, mas não era um sonho.

Então localizei outra vez aquele mesmo anjo parado entre nuvens. Estava de branco, agora, mas nenhum sorriso nos severos, em suas mãos havia um jarro de ouro. De dentro dele, chovia um mar de sal sobre a minha cabeça. Por quê?! — eu perguntei. O anjo abriu a boca. E não sei se entendo o que me diz.

CFA - perfeito, like always.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

e os sonhos extraviados... para onde vão?

A Moça do Sonho
Edu Lobo/ Chico Buarque

Súbito me encantou
A moça em contraluz
Arrisquei perguntar: quem és?
Mas fraquejou a voz
Sem jeito eu lhe pegava as mãos
Como quem desatasse um nó
Soprei seu rosto sem pensar
E o rosto se desfez em pó

Por encanto voltou
Cantando a meia voz
Súbito perguntei: quem és?
Mas oscilou a luz
Fugia devagar de mim
E quando a segurei, gemeu
O seu vestido se partiu
E o rosto já não era o seu

Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não
Por ali reinaria meu bem
Com seus risos, seus ais, sua tez
E uma cama onde à noite
Sonhasse comigo
Talvez

Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás
Se eu pudesse encontrar meu amor
Não voltava
Jamais

Melhor que a letra em si, só mesmo ouvir o Edu Lobo cantando, com toda a maestria que ele e outros poucos demonstram.

diquinhas.


Do blog da Fernanda D´Umbra

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

better, much better.

Donde?
Janeiro 20, 2009 by José Saramago

Donde saiu este homem? Não peço que me digam onde nasceu, quem foram os seus pais, que estudos fez, que projecto de vida desenhou para si e para a sua família. Tudo isso mais ou menos o sabemos, tenho aí a sua autobiografia, livro sério e sincero, além de inteligentemente escrito. Quando pergunto donde saiu Barack Obama estou a manifestar a minha perplexidade por este tempo que vivemos, cínico, desesperançado, sombrio, terrível em mil dos seus aspectos, ter gerado uma pessoa (é um homem, podia ser uma mulher) que levanta a voz para falar de valores, de responsabilidade pessoal e colectiva, de respeito pelo trabalho, também pela memória daqueles que nos antecederam na vida. Estes conceitos que alguma vez foram o cimento da melhor convivência humana sofreram por muito tempo o desprezo dos poderosos, esses mesmos que, a partir de hoje (tenham-no por certo), vão vestir à pressa o novo figurino e clamar em todos os tons: “Eu também, eu também.” Barack Obama, no seu discurso, deu-nos razões (as razões) para que não nos deixemos enganar. O mundo pode ser melhor do que isto a que parecemos ter sido condenados. No fundo, o que Obama nos veio dizer é que outro mundo é possível. Muitos de nós já o vinhamos dizendo há muito. Talvez a ocasião seja boa para que tentemos pôr-nos de acordo sobre o modo e a maneira. Para começar.

Publicado em O Caderno de Saramago

Só pra completar: eu torço firmemente para que tio Obama mande tão bem quanto o mundo espera. Imagino o peso dessa expectativa mundial sobre suas ações e estratégias, mas penso também que sua vontade de fazer diferente deva ser tão grande quanto o fardo que carrega. Começou bem, com uma ótima equipe política. Vamos aguardar e desejar dias melhores. Para todos nós.

o meu infinito particular

"Sou o espelho da complexidade na sua forma mais simples;
Sou a intensidade com mil exclamações;
Sou dono do questionamento interminável que lancei ao vento;
Sou pedaço do pequeno mundo lá fora, dentro de um enorme universo à parte;
Sou fiel nas traições e sincero demais nas mentiras;
Sou a pressa com todo o tempo disponível;
Sou a bagunça na qual se encontra qualquer coisa;
Sou a continuação das eternas perguntas e respostas ainda sem conclusão;
Sou o errado que busca acertar e a sorte de acertar sem querer;
Sou triste mascarando alegria, e a alegria enrustida de tristeza;
Sou amigo de quase todos, mas poucos conseguiram me cativar;
Sou altruísta com estranhos e egocêntrico com os mais próximos;
Sou humilde por puro charme, mas vaidoso sem ser pedante;
Sou exagerado na medida certa;
Sou crente, mas também sou cético;
Sou tiro de rosas em canhões, mas disparo mágoas com a própria língua;
Sou tão certo quanto a dúvida e tão duvidoso que já nem sei;
Sou gritos desesperados em silêncio;
Sou interpretado como não queria e invisível quando me mostro por inteiro;
Sou indeciso por pura convicção;
Sou mais do que esperam e bem menos do que precisam;
Sou aquele que voa ainda no chão e o que desfila aéreo pelas ruas;
Sou a rotina inesperada das imprevisíveis aventuras;
Sou tão óbvio quanto à própria contradição".

Marcus Deminco

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

pelos recantos mais profundos...

Escrever, trabalhar, amar. Utilize para a sua necessidade mais ardente do momento - e não é que o ensinamento de Rilke serve para todas as áreas da vida?

“Prezadíssimo Senhor
(...) Ninguém o pode aconselhar ou ajudar – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever? Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder constatar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa sua vida de acordo com esta necessidade”.

Carta de Rainer Maria Rilke a Kappus em 17/02/1903

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

o magro invento de um sonho

Poesia

Não saberei nunca
dizer adeus
Afinal,
só os mortos sabem morrer.

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo,
eu sei
Ainda assim,
escrevo.

Mia Couto

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

sementeira de tulipas

Querido Helano,

Hoje eu comprei sementes de girassol. Há isso de extraordinário no mundo. Quando alguém se sente só ou com saudade de outrem pode comprar sementes de girassol para vê-lo crescer. Pode até fazer uma sementeira de tulipas. Neste caso, é preciso aguar todos os dias, com a ponta dos dedos, deixando cair uma ou duas gotas, apenas. Já as coisas abrutalhadas, máquinas, tratores ou edifícios, deixo aos outros, cuidarem. Também elas precisam de carícias: não vê o homem pendurado nas vidraças com um pano molhado? Não vê a máquina acarinhando a outra com a lixa? Há muitas formas de cuidar. E, felizmente, o delicado e o bruto na esfera do mundo. Se me ocupo da semente é porque escuto o seu silêncio. O silêncio com que ela abraça, tão brandamente, o seu grãozinho de terra.

Rita Apoena

Para ler escutando isso aqui. Nem aprecio o grupo, mas esta música é muito fofa. :)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

coração meu, meu coração

Eu sempre quis um amor como aqueles de cinema, que fazem o coração bater acelerado apenas por saber que alguém, longe ou perto, pensa em você tanto quanto você nele. Quer seu bem e, mais do que tudo, quer passar a vida inteira ao seu lado. Eu pedi, muito e incessantemente, por um amor que me tirasse o chão e me levasse ao céu.

Como o universo costuma ser bem generoso comigo, tenho percebido isso, eu recebi. Primeiro um, depois o outro. Num curto espaço de um ano e meio, experimentei as mais pesadas sensações que um frágil coração, que jamais tinha amado nessa intensidade, poderia suportar. Um coração que sempre quis dar e receber, mas não se preparou para este momento. E então, quando chegou a hora de ser feliz, o coração quis dar demais, além do que havia sido solicitado e acordado entre as partes. Deu tanto, mas tanto, e de uma forma tão intensa, que acabou seco e pequenino, retorcido pelas amarras de algo que nem ele mesmo sabe definir.

O tempo passou, o danado estava quase recuperado e pronto, lá veio o amor dilacerá-lo mais uma vez. Veio com tudo: inteligência, ótimo papo, poesia, música, voz doce, um quê de classe e a sabedoria de quem entende das coisas aliado ao jeito mais brejeiro e caipira do cerrado, um raio de sol nos cabelos e a intensidade que ele sempre desejou colocada à máxima potência. Casa, comida e roupa lavada, emprego, piscina, um amor beirando o impossível e, justamente por isso, digno das melhores telas de cinema ou capas de livro, tudo isso e um pouco mais. Coração teve medo, não soube como agir diante de proposta tão arriscada e tentadora e, ao invés de aproveitar o momento, fugiu como um guri assustado diante de sua primeira grande dificuldade. Ninguém acreditou quando o BEM recusou o DOM que lhe havia sido dado. O que poucos entendem é que este coração precisa, antes de mais nada, se organizar. Preparar-se para receber o amor. Estar pronto para dar também. É o que ele mais quer. E saberá dizer sim quando estiver pronto. Quando chegar a hora.

Meu coração é o mendigo mais faminto da rua mais miserável – já disse o sabido Caio Fernando. O meu não só sente fome, como arde e lembra todos os dias aquelas madrugadas onde não havia distância, nem problema, nem conta de telefone, nem medo. Eram apenas duas almas interligadas por um sentimento único e avassalador. Talvez alguns dos melhores momentos tenham sido passados assim, à distância. O filme da garota do copo d´água não conta, é hours-concours no ranking das cenas inesquecíveis. E apenas duas pessoas neste mundo sabem como estes breves e fugazes instantes foram especiais e intensamente vividos.

Hoje, “meu coração é um anjo de pedra com a asa quebrada”. E neste momento estamos aqui, à beira-mar, fazendo a reabilitação da asa e reunindo forças e energias para mais um ano.

Nada se perdeu. Tudo que foi vivido representa o que sou hoje e me faz ainda mais forte. Mais feliz também, apesar do gosto amargo da impossibilidade. Apesar de amar desse jeito trôpego e confuso, sem saber como nem onde. Mas, mesmo quando as pernas vão vacilantes e o fardo se torna pesado, ainda assim “encho-me dum leite de versos e, sem poder transbordar, encho-me mais e mais”. Por que só sei viver e amar assim. “Como quem desaba sobre o outro como uma chuva forte”.

***

Este texto utilizou frases "entre aspas" de Maiakovski, Olga Savary e claaro, Caio Fernando Abreu.

quase um faquir involuntário

Coisa mais linda esse texto do Caio, que ajudou a criar o texto acima:

Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:

Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.

Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.

Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.

Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.

Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.

Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.

Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se pôs. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.

Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.

Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.

Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar será feliz para sempre.

Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas.

Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: “I’m too pure for you or anyone”. Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.

Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.

Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.

Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega.

Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.

Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.

Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!

Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.

Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração teu.

Caio Fernando Abreu