segunda-feira, 31 de março de 2008

eu também só ando a cem

"Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas" - não é assim a música do genial Paulinho da Viola, cantada pelo Chico Lindo Buarque? Pois é, eu sigo tentando pegar meu lugar no futuro, trabalhando como nunca e me divertindo bem menos do que gostaria. Mas não posso reclamar não - as coisas estão acontecendo, teremos folders e banners no Congresso (salve Milton, salve Ana) e eu sigo, na medida do possível, feliz com minha vida, meus amigos e, porque não, até com os tropeços. Fazem parte da trajetória (o pé machucado que o diga rs). Já ganhei 2 presentes lindos e especiais de aniversário, revi 4 das pessoas mais importantes no domingo (rendeu, hein! adorei tudo, amo vcs!) e amanhã sigo fortalecida e feliz para São Roque. Falta um monte de coisa (um novo amor, principalmente, que o inverno está chegando, o dia 12 também, e as coisas tendem a ficar mais difíceis nesta época do ano*), mas como diz a Inês Pedrosa, se tivéssemos tudo, o que ficaria para desejar? Finalizo com ela, a música Sinal Fechado: "me perdoe a pressa: é a alma dos nossos negócios."

Voltarei domingo. Nunca é demais pedir vibrações positivas, né?! Portanto, torçam, please! :-)

* Inverno lembra frio que lembra cobertor de orelha que lembra neve que lembra Doutor Jivago. Um dos filmes mais belos e mais tristes. Inverno também lembra a música do Djavan que está tocando neste exato momento no rádio e diz que um dia frio é um bom lugar pra ler um livro. Ai ai...

sábado, 29 de março de 2008

sombra clara no dia azul

Era uma sombra clara
No dia azul.
Era um pequeno soluço
No choro imenso.
Era um fio de vida
Na primavera,
No mundo crescendo,
Na frutificação,
No reflorescimento
Dos seres,
Das árvores,
De tudo,

Era uma lágrima
No seio do mar.
Era um breve gesto de adeus
No movimento
Unânime.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Pelo dia de ontem - alguém percebeu que o céu estava escandalosamente azul? E a luta continua do lado de cá, com o Congresso (não o de Brasília, mas o Congresso anual da empresa que trabalho) batendo na porta e pedindo pra entrar. Começa nesta quinta e vai até domingo. Até parece que foi ontem que o ano começou. Será que, a cada ano que passa, o tempo vai ficando mais curto e mais rápido? Esta é a sensação. Well, a quem passa por aqui, ainda que por engano, o meu abraço. :)

terça-feira, 25 de março de 2008

o correr da vida embrulha tudo

Trabalhando bastante. Muito mesmo. Tenho um evento grande na semana que vem e a tendência, agora, é ficar um pouco ausente do blog, pelo menos até o dia 06 de abril. Estou feliz, as coisas estão acontecendo, a vida segue seu fluxo e pessoas do passado, ainda que importantes, cada vez mais se aconchegam no lugar quente e saudável onde devem ficar: lá atrás, numa parte da minha vida que não volta mais. Para melhorar, recebi uma boa notícia hoje e agora é adrenalina total até o evento acabar. Confesso: Gosto disso. Odeio rotina, trabalhos burocráticos, dias que passam tranquilamente. Voltarei sempre que a saudade bater forte e a vontade de falar algo for grande, muito grande.

Concluo com Guimarães:

"O fato se dissolve. As lembranças são outras distâncias. Eram coisas que paravam já, à beira de um grande sono. A gente cresce sempre, sem saber para onde."

"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem."

"O senhor sabe o que silêncio é? É a gente mesmo, demais. Vivendo se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas. A gente sabe mais, de um homem, é o que ele esconde. A gente só sabe bem aquilo que não entende. Amor é a gente querendo achar o que é da gente."

"Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!"

"Hê, de medo, coração bate solto no peito; mas de alegria ele bate inteiro e duro, que até dói, rompe para adiante na parede."

João Guimarães Rosa
(Grande sertão: veredas)

segunda-feira, 24 de março de 2008

triste, porém feliz

A capital francesa é o cenário do filme coletivo "Paris, Te Amo", que reuniu ótimos diretores para retratar uma Paris pouco conhecida dos turistas. O documentário tem 18 curtas e cada um registra um arrondissement (bairro) parisiense. Vi esse final de semana, junto com "O Passado", que ainda estou digerindo e pretendo comentar depois. "Paris, te amo" já está nas locadoras e merece ser visto. Lança um olhar bem diferente sobre a cidade, seus habitantes e os sentimentos que ela provoca.

O "triste, porém feliz" do título é a frase derradeira do último curta, que retrata a visão de uma americana que vai à Paris sozinha. E ali, sem amigos, sem conhecer a língua e sem ter com quem comentar o que está vendo ou sentindo, ela se diz "triste, porém feliz". Aquela sensação -quem nunca teve?- de estar num lugar que você sempre quis estar, mas faltar alguém ao lado pra compartilhar tanta felicidade. Muito belo, real e triste.

Quem me conhece sabe: eu amo essa cidade mais do que qualquer outra - apesar de ainda não conhecê-la de perto. Um dia a gente chega lá.

tudo o que é jogo e tudo o que é passagem

Poesia

Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.
Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem.
No interior das coisas canto nua.
Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos
Aqui sou eu em tudo quanto amei.
Não pelo meu ser que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos actos que vivi,
Mas por tudo de quanto ressonei
E em cujo amor de amor me eternizei.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Lindo poema. E eu estou na fase de entender o que é jogo -e vai acabar um dia-, o que é passagem -o nome fala por si só- e o que vai ficar para sempre. Afinal, alguma coisa sempre fica.

quinta-feira, 20 de março de 2008

inimaginável beleza e dor

SAIR

Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.

Antonio Cicero
De A cidade e os livros (Record, 2002)

Nota: Antonio Cicero nasceu no Rio de Janeiro em 1945. Estudou na Inglaterra e nos Estados Unidos. É poeta, filósofo e letrista de MPB (em parcerias sobretudo com sua irmã, Marina Lima).

Bom feriado e boa páscoa! Ah, não abuse do chocolate - pode causar espinhas e piorar o estado de ansiedade dos mais estressadinhos. rs

metade



by Oswaldo Montenegro

terça-feira, 18 de março de 2008

coisas inolvidáveis

Limites

Destas ruas que afundam o poente
Há uma (eu não sei qual) que percorri
Já pela última vez, indiferente
E onde, sem o adivinhar, me submeti

A Quem pefixa onipotentes normas
E uma secreta e rígida medida
Às sombras, aos sonhos e às formas
Que destecem e tecem esta vida.

Se para tudo há fim, um nunca mais
E o último adeus, o esquecido
Quem nos dirá de quem, nestes umbrais,
Despedimo-nos desapercebidos?

Cessa a noite através do cristal gris
E, do cimo dos livros que partida
Sombra espalha pelo tampo impreciso,
Uma folha que nunca será lida.

No sul mais de um portão enferrujado
Com seus jarrões de gesso e alvenaria
E tunas, a meu trânsito vedado
Como se fosse uma litografia.

Para sempre alguma porta foi cerrada
Por ti. E em vão o espelho aguarda e espia;
A ti parece aberta a encruzilhada
E, quadrifonte, é Jano que a vigia.

Uma há, dentre as memórias todas tuas,
Que se perdeu irreparavelmente;
Não te verão baixar a água vertente
Nem o branco sol nem dourada lua.

Tua voz não voltará ao verso persa
Em sua língua de rosas e de aves,
Quando no ocaso, ante a luz dispersa,
Buscares por coisas inolvidáveis.

E o incessante Ródano e o lago
Todo esse ontem sobre o qual me inclino?
Tão perdido estará como Cártago
Que a sal e fogo apagou o latino.

Julgo ouvir, ao alvor, rumorejar
Laborioso da turba se afastando;
São quem me quis amar e me olvidar;
Espaço e tempo e Borges me deixando.

Jorge Luis Borges
In Obras Completas II (O Outro, O Mesmo, 1964)

Depois disso, não falo nem escrevo mais nada. Lindo demais!

segunda-feira, 17 de março de 2008

do amor e suas leseiras incríveis

JORNAL NACIONAL DO AMOR

Ali nas primeiras horas da noite, bate aquela necessidade física inadiável de contar como foi o dia. Contar e ao mesmo tempo receber notícias tuas. Seja um épico, um feito memorável, seja uma coisa à toa, um carro na poça que quase te molha todinha, um chato que te pegou para Cristo, um chefe maluco, os comentários sobre o tempo, ainda bem que choveu, meu bem, a noite está ótima para uns tragos, para dizer aquelas coisas que não se dizem assim para qualquer uma.

Sobe a vinheta, sonoplasta picareta, é o Jornal Nacional do Amor que começa agora, uma dos momentos nobres de ter alguém na vida, conta lá que eu conto cá, e haja narrativas.

Ter alguém para dizer seu dia é melhor que sexo, melhor que costelinha de porco, melhor que lamber os beiços com o galetinho-gloss da tevê de cachorro, melhor que doce de leite, melhor que sarapatel, é tão bom que empata com todos os caprinos e feijoadas completas.

Contar para um amigo é diferente, contar para um irmão é outra história, contar para a vizinha é roubada, contar só serve, amigo, se for à boquinha da noite, e se for para a mulher que habita, sem pagar prestações, sem aluguel ou fiança, a Cohab, o BNH, o conjunto do Mirandão no Crato, o Alfredo Bandeira no Recife ou a quitinete metropolitana dos nossos pobres corazones.

O Jornal Nacional do Amor não tem mentiras de graça, somente mentiras sinceras, aquelas que melhoram as coisas, que levantam a bola, que restauram a lua de mel no auge de Canoa Quebrada, com aquele céu de Bilac, ora direis, aquela cachaça, sustança, e os lençóis de cambraia bordados, letras barrocas, “até que a morte nos separem”.

Na alegria ou na tristeza, contar o dia é a melhor das artes de estar juntos.

Do amor e suas leseiras incríveis, suas breguices, porque todo amor é brega assim como todas as cartas amorosas são ridículas; só os metidos não amam, não aprenderam nem mesmo com os brutos de Shane e de outros belos faroestes.

Do amor, seu Sthendal, nós nunca enchemos a barriga.

Eita fome de viver da gota, eita Jequitinhonha da existência.

“Ai, amor, estou tão cansada, meio enjoada, acho que vou menstruar”, ela diz, bem linda, ainda na rua, “você me agüenta mesmo assim?”, ela completa.

No que o mancebo responde com um lindo plágio: “Você me conta como foi seu dia/ E a gente diz um p'ro outro:/ - Estou com sono, vamos dormir!”

Contar sempre, porque até nossos silêncios dentro de casa deixam ecos que viram legendas para sonhos e manhãs amanteigados.

Xico Sá, manda muuuito bem o rapaz, aqui seu blog.

domingo, 16 de março de 2008

até tu, Chico

Em entrevista histórica à Revista Playboy (publicada em fevereiro de 1979), Chico Buarque revela seu lado mais fraco e fala sobre a ausência de religião -diz ser materialista-, sua autopunição com o trabalho que dá certo e o medo de fazer análise, entender os mistérios da vida e "secar" a criatividade. Veja alguns trechos:

Playboy - Mas a gente sabe que a liquidação racional da religião não elimina necessariamente alguns mecanismos religiosos profundos - a noção de pecado, o sentimento de culpa, por exemplo. Você não se pilha, às vezes, numa autopunição?
Chico [ri] - Minha mulher acha que sim, que o tempo todo. [Pausa] Olha, uma entrevista desse tipo fica um pouco delicada para mim, porque eu me recuso a fazer análise, e está parecendo uma espécie de análise. [Pausa] Agora, segundo quem conhece mais o negócio, eu tenho uma compulsão assim autopunitiva. Pode ser verdade. Eu não quero entrar muito a fundo nisso, não quero pensar nisso. [Pausa] Fatos concretos: o disco Meus Caros Amigos de repente vendeu 500 mil. Cria um problema sério dentro de mim, me faz ficar um pouco agressivo, entende? Me transtorna um pouco no sentido mesmo de autoflagelação, de negação.
Playboy - Pode explicar melhor?
Chico - Ficar brigando contra o sucesso mesmo, entende? E sentir uma certa culpa da coisa bem-sucedida. Uma vontade secreta de querer destruir isso, de querer minar. Isso é uma opinião que não é minha, porque eu não tenho condições, não quero, não penso muito nisso. Acho que talvez tenha alguma coisa a ver. Quer dizer, depois desse disco não quis gravar outro no ano seguinte, e ano passado gravei com uma certa dificuldade. Aconteceu antes com Construção, que fez um sucesso muito grande para a época: eu passei anos sem conseguir gravar um disco meu; fiquei fazendo disco de show, disco de filme, disco com outros compositores. Isso é conversa que estou retransmitindo, de gente analisada e gente que pensa em termos analíticos.
Playboy - Você nunca fez análise?
Chico - Eu não faço, não fiz, não quero fazer e fujo um pouco disso.
Playboy - Por quê?
Chico - Geralmente quando a gente entra muito nesse negócio, fica com receio de desvendar os mistérios.
Playboy - De sua criação?
Chico - Exatamente. Precisamente disso. Eu não sei por que faço música. É terrível quando pinta uma fase de angústia, as fases em que acho que sequei. Aí realmente dá vontade de dar o braço a torcer e tratar da cabeça pra ficar legal, pra viver legal. Mas para mim parece que viver legal se opõe a criar. Então, é uma opção. Não digo que seja definitiva - pode ser que encha o saco e eu diga: olha, eu quero que se dane, não quero fazer mais nada, se for para não fazer mais nada eu pelo menos quero ficar tranqüilo, quero viver tranqüilo.
Playboy - A criação é, portanto, um processo que você não domina?
Chico - Não domino, e tenho medo: se eu dominar, acaba. Parece que é isso. [Pausa]. Olha, isso que eu vou dizer é uma colocação para uso, talvez, [ri] de algum psicanalista: eu não lembro de ter tido uma fase tão tranqüila em minha vida profissional como quando morei na Itália. Foi quando despintou o sucesso, lá na Itália eu não era ninguém, evidentemente. Cheguei lá e depois de dois meses eu era nada. Aqui no Brasil, eu era considerado nada, cocô. Eu me chateava com isso, claro. Lia entrevistas em que se davam notas a cantores e cantoras. Chico Buarque: zero. Isso me chateava, mas no fundo eu estava tranqüilo: ah, bom, então é assim? Então não te dão obrigação de ter nota dez, já estou com a nota zero... Tudo o que fizer é lucro, não tenho nada a perder. Enquanto que nesse negócio de "tudo bem", "maravilha", o peso é muito maior.
Playboy - Uma situação absurda: você continua criando, mas de repente não faz sucesso nenhum.
Chico - No fundo, no fundo, se eu tivesse certeza de estar fazendo uma coisa muito boa, o fato de não fazer sucesso não me incomodaria. O que acontece é que, dentro desse trabalho que eu estou desenvolvendo, a falta de resposta do público é sintomática. Eu estou fazendo música popular, ou teatro que se pretende popular, não estou fazendo nada desligado disso. Nesse sentido não sou Hermeto Paschoal, não estou fazendo uma experiência de vanguarda dentro da música, nem dentro do teatro. Então, se eu não tiver uma resposta satisfatória do público ouvinte, do leitor, do espectador eu vou ficar desconfiado de que está errado.

Fonte: Site Oficial do Chico.

Eu achei genial essa relação que ele fez, do sentimento de não entender os mistérios e viver angustiado e a necessidade de manter isso intacto para que o processo criativo continue. E fiquei pensando que talvez seja por isso que muitos gênios (da literatura, música, pintura, etc) morram sem ser entendidos e na mais profunda solidão, cercados de vazios, carências e questionamentos vários. E, claro, em uma escala muito maior que nós, os simples mortais. Imagina como devia ser difícil ser uma Clarice Lispector, um Caio Fernando Abreu, um Fernando Pessoa. Eu, hein. Prefiro me recolher à minha insignificância e às minhas neuras, que não são poucas. rs

sábado, 15 de março de 2008

a luta branca sobre o papel

Minha breve, singela e atrasada homenagem ao Dia Nacional da Poesia, comemorado ontem, dia 14 de março:

A lição de poesia

1.
Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2.
A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3.
A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis ­ naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.

João Cabral de Melo Neto

Fonte: comunidade Discutindo Literatura - da querida amiga e poeta Luciana Pessanha Pires.

sexta-feira, 14 de março de 2008

essa coisa: emoções

"(...) Como você sabe, dirás feito um cego tateando, e dizer assim, supondo um conhecimento, faria quem sabe o coração do outro adoçar um pouco até prosseguires, mas sem planejar, embora planejes há tanto tempo, farás coisas como acender o abajur do canto depois apagar a luz mais forte, criando um clima assim mais íntimo, mais acolhedor, que não haja tensão alguma no ar, mesmo que previamente saibas do inevitável das palmas molhadas de tuas mãos, do excesso de cigarros e qualquer coisa como um leve tremor que, esperas, não transparecerá em tua voz. Mas dirás assim, por exemplo, como você sabe, sim como você sabe, a gente, as pessoas, infelizmente têm, temos, essa coisa, emoções, mas te deténs, infelizmente? o outro talvez perguntaria por que infelizmente? então dirás rápido, para não desviar-te demasiado do que estabeleceste, qualquer coisa como seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente, insistirás, infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções. Meditarias: as pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que sentem, e por trás do que sentem há o que são e nem sempre se mostra. Há os níveis-não-formulados, camadas imperceptíveis, fantasias que nem sempre controlamos, expectativas que quase nunca se cumprem, e sobretudo emoções. Que nem se mostra. Por tudo isso, infelizmente, repetirás, insistirás, completamente desesperado, e teu único apoio seria a mão estendida que, passo a passo, raciocinas com penosa lucidez, através de cada palavra estarás quem sabe afastando para sempre. Mas já não sou capaz de me calar, talvez dirás então, descontrolado, e um pouco mais dramático, porque meu silêncio já não é uma omissão, mas uma mentira. O outro te olhará com seus olhos vazios, não entendendo que teu ritmo acompanharia o desenrolar de uma paisagem interna, absolutamente não-verbalizável, desenhada traço a traço em cada minuto dos vários dias e tantas noites de todos aqueles meses anteriores, recuando até a data, maldita ou bendita que mágico ou demoníaco, deliberado ou casual, te inflama assim, alucinando tua alma. Queres pedir a ele que, simplesmente sendo, te mantenha nesse atormentado estado brilhante para que possas iluminá-lo também com teu toque, com tua língua terna, com a vara de condão de teu desejo. Mas ele nada sabe, nem saberá se permaneceres assim, temeroso de que uma palavra ou gesto desastrados seriam capazes de rasgar em pedaços essa trama onde te enleias cada vez mais sem remédio, emaranhado em ti, em tua viva emoção, emaranhado no desconhecido de dentro dele, o outro - que no lado oposto do sofá cruza as mãos sobre os joelhos, quase inocente, esperando atento, educado, que de alguma forma termines o que começaste.
Muito mais que com amor ou qualquer outra forma tortuosa de paixão, será surpreso que o olharás agora, porque ele nada sabe de teu próprio poder sobre ti, e neste exato momento poderias escolher entre torná-lo ciente de que dependes dele para que te ilumines ou escureças assim, intensamente, ou quem sabe orgulhoso negar-lhe o conhecimento desse estranho poder, para que não te estraçalhe impiedoso entre as unhas agora calmamente postas em sossego, cruzadas nas pontas dos dedos sobre os joelhos.(...)"

Caio Fernando Abreu, conto Natureza Viva

Respirou? Tomou fôlego de novo? Agora me diga, não é lindo? Um dos melhores contos do Caio, certamente. E olha que eu gosto de bastante coisa dele, hein. rs

quinta-feira, 13 de março de 2008

samba meu e outras melodias

Sou uma mulher de fases. E como estou num momento muito musical, deixo algumas dicas:

1. Eu não consigo parar de escutar o CD novo da Maria Rita, Samba Meu. Apesar de gostar de samba e dela também, só agora parei para conhecer o disco. Adorável. Conheça todas as músicas aqui.
2. Tem show do Lenine neste domingo, às 18h, no Ibirapuera, totally free of charge. Se São Pedro colaborar, "é nóis" lá cantando junto.
3. Tem show do Jorge Vercilo 16 e 17/05 no antigo Tom Brasil. Virou HSBC Brasil, o que é bem vantajoso pra mim, que sou cliente do banco. Está nos planos.
4. Sobre o mesmo assunto, amo essa frase:
"Minha alma é uma orquestra oculta. Não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia." (Fernando Pessoa)
5. Aprecie "Samba Meu", na minha opinião a melhor música do CD:

quarta-feira, 12 de março de 2008

motivation classes

Num dia qualquer dos primeiros meses de 2007, eu recebi o texto abaixo de alguém importante. Remexendo nas minhas memórias virtuais encontrei tal mensagem, e coisas belas e simples, como sempre, merecem estar aqui:

"...Então ela pensou:

Sou mais do que isso que vêem em mim. Mereço mais do que a atenção distraída, o gesto entediado, o olhar desatento. Nem eu mesma sabia, mas sou algo além desse vulto obscuro, essa criatura inaparente, resignada ou rancorosa, que permite ou cobra mais do que alguém lhe poderia dever. Eu sou o novelo das palavras não ditas que se condensou na treva onde me sinto sozinha. É dali que sobe esse vento e nasce esse palavreado incessante que não me deixa dormir; esse sopro de capim perfumado, esse farfalhar de passos que nunca chegam mas nunca se vão inteiramente, esse mar debaixo da sacada... e sua música me dá coragem de abrir os olhos cada manhã de cada dia em que eu tento ser com tanta aflição. E preciso de que alguém que me ame, entenda isso, descubra isso, aceite e ame também isso em mim.
... quando o outro entende que sou apenas uma pessoa, uma pessoa, uma pessoa."

(Lya Luft)

os princípios, os meios, os fins

Bonito isso aqui:

"Não importa o que se ama. Importa a matéria desse amor. As sucessivas camadas de vida que se atiram para dentro desse amor. As palavras são só um princípio - nem sequer o princípio. Porque no amor os princípios, os meios, os fins são apenas fragmentos de uma história que continua para lá dela, antes e depois do sangue breve de uma vida. Tudo serve a essa obsessão de verdade a que chamamos amor. O sujo, a luz, o áspero, o macio, a falha, a persistência."

Inês Pedrosa, in Fazes-me Falta

terça-feira, 11 de março de 2008

o equilíbrio e a necessidade de silêncio

Há dias Clarice não aparecia aqui. E como ela é algo de fundamental para mim, para a Macabéa e para todos aqueles que sentem o vazio e os mais profundos sentimentos contraditórios e inexplicáveis, reproduzo 2 cartas endereçadas a ela, de Fernando Sabino, que traduzem um pouco disso tudo:

Nova York, 06 de julho de 1946.

Clarice,
Porisso (sic) não te posso mandar nenhuma palavra animadora. Digo apenas que não concordo com você quando você diz que faz arte apenas porque “tem um temperamento infeliz e doidinho”. Tenho uma grande, uma enorme esperança em você e já te disse que você avançou na frente de nós todos, passou pela janela, na frente deles todos. Apenas desejo intensamente que você não avance demais para não cair do outro lado. Você tem de ser equilibrista até o fim da vida. E suando muito, apertando o cabo da sombrinha aberta, com medo de cair, olhando a distância do arame já percorrido e do arame a percorrer — e sempre tendo de exibir para o público um falso sorriso de calma e facilidade. Tem de fazer isso todos os dias, para os outros como se na vida não tivesse feito outra coisa, para você como se fosse sempre a primeira vez, e a mais perigosa. Do contrário seu número será um fracasso.
Fernando.

*****

Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1953

Clarice,
Gostei de saber que você está com a alma mais sossegada. O sentimento de grandeza que você acha que está perdendo talvez agora é que você esteja adquirindo. Sua predisposição para ficar calada não é propriamente uma novidade: a novidade é estar aceitando, inclusive, o silêncio. É bom isso, dá mais paciência, mais compreensão, dá mais sentimento às coisas — e dá grandeza.
Fernando.

Fonte: Livro Correspondências, Ed. Rocco, 2002. Algumas cartas estão disponíveis no site da editora dedicado à Clarice. Veja aqui.

sábado, 8 de março de 2008

porque a gente merece.


Como diz a Adélia Prado, "se for só isso o céu, está perfeito". E se a gente não pode ver ao vivo, ao menos em foto e em vídeo, George UAU Clooney sempre faz bem e reanima. O meu singelo presentinho a todas as gurias que passam por aqui, neste que é declaradamente o nosso dia, ainda que apenas simbólico.

Sobe George, que agora é hora de se arrumar pra festa do brother. E formatura agora, só no ano que vem, ok. hehehe

o verão e as mulheres

Talvez tenha acabado o verão. Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol é muito claro. Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas. As cigarras não cantam mais. Talvez tenha acabado o verão.

Estamos tranqüilos. Fizemos este verão com paciência e firmeza, como veteranos fazem a guerra. Estivemos atentos à lua e ao mar; suamos nosso corpo; contemplamos as evoluções de nossas mulheres, pois sabemos quanto é perigoso para elas o verão.

Sim, as mulheres estão sujeitas a uma grande influência do verão; no bojo do mês de janeiro elas sentem o coração lânguido e se espreguiçam de um modo especial; seus olhos brilham devagar, elas começam dizer uma coisa e param no meio, ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho. Seus cabelos tornam-se mais claros e às vezes as olhos também; algumas crescem imperceptivelmente meio centímetro.

Estremecem quando de súbito defrontam um gato; são assaltadas por uma remota vontade de miar; e certamente, quando a tarde cai, ronronam para si mesmas.

Entregam-se a redes; é sabido, ao longo de toda a faixa tropical do globo, que as mulheres não habituadas a rede e que nelas se deitam ao crepúsculo, no estio, são perseguidas por fantasias e algumas imaginam que podem voar de uma nuvem a outra nuvem com facilidade. Sendo baladas, elas se comprazem nesse jogo passivo e às vezes tendem a se deixar raptar, por deleite ou preguiça.

Observei uma dessas pessoas na véspera do solstício, em 20 de dezembro, quando o sol ia atingindo o primeiro ponto do Capricórnio, e a acompanhei até as imediações do Carnaval. Sentia-se que ia acontecer algo, segunda dia da lua cheia de fevereiro; sua boca estava entreaberta: um sinal aos interessados, e ela pôde ser salva.

Se realmente já chegou o outono, embora não o dia 22, me avisem. Sucederam muitas coisas; é tempo de buscar um pouco de recolhimento e pensar em fazer um poema.

Vamos atenuar os acontecimentos, e encarar com mais doçura e confiança as nossas mulheres. As que sobreviveram a este verão.

Março, 1953.

Rubem Braga in "200 Crônicas Escolhidas"

migalhas, apenas.

Belo, muito belo. Mais um poema pra lista do "Li, gostei e postei":

Mais de uma vez meu coração trincou feito vidro
diante da página impressa,
e sempre que a palavra justa vem tirar seu mel
de dentro da copa do desespero de amor.
Acredito, do fundo das minhas células,
que uma amizade sincera “é o único modo de sair da solidão
que um espírito tem no corpo”.
Sim, eu acredito no corpo.

Por tudo isso é que eu me perco
em coisas que, nos outros,
são migalhas.
Por isso navego, sóbria, de olho seco,
as madrugadas.
Por isso ando pisando em brasas
até sobre as folhas de relva,
na trilha mais incerta e mais sozinha.

Mas se me perguntarem o que é um poeta
(Eu daria tudo o que era meu por nada),
eu digo.
O poeta é uma deformidade.

Claudia Roquette-Pinto

sexta-feira, 7 de março de 2008

trago boas novas

1. O evento de ontem foi maravilhoso. Para mim, 99% de perfeição.

2. A Saraiva comprou a Siciliano por R$ 60 milhões. Juntas, as ex-rivais formarão uma rede de 99 livrarias e a maior empresa do setor em faturamento - a nova rede será a segunda maior em número de lojas, depois da rede de franquias Nobel, com 170 unidades.

3. Eu quero um desse aqui na minha sala. Que deve custar alguns milhares de reais.


Summer Night, de Beatriz Milhazes, 2006.

literatura de mulherzinha?

Interessante estudo sobre o perfil da mulher na literatura. Ainda que beeem feminista e falho por não incluir a mulherada mais nova e que publica por editoras menores, não deixa de ser interessante. Fica a pergunta: Pq o Brasil tem tantas cantoras mulheres e tão poucas representantes na literatura?


O sexo continua frágil no romance brasileiro
Por Cadão Volpato, para o Valor, de São Paulo
07/03/2008

Na ponta do lápis, a literatura brasileira contemporânea brasileira tem maltratado as mulheres. Estudiosa da moderna narrativa do país, a professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB), comandou um grupo de pesquisa composto por cerca de 30 estudantes de graduação e de pós-graduação, embrenhou-se na produção romanesca de 1990 a 2004 e concluiu: "A condição feminina evoluiu muito mais rapidamente do que sua representação na literatura." Ou seja, em matéria de romance brasileiro publicado nesse período por três das maiores editoras do país, as mulheres foram postas para escanteio.

Os números do trabalho não mentem. Foram exaustivas leituras e catalogações de 258 romances. Dentro deles, havia 1.245 personagens. Os estudiosos da UnB decidiram ater-se a três editoras grandes: Companhia das Letras, Record e Rocco, escolhidas a partir de uma consulta a profissionais da literatura, no que eles chamam de "método reputacional", eufemismo que define aquelas casas que dão maior prestígio a seus autores.

Foram lidos e fichados todos os romances brasileiros publicados em primeira edição por essas editoras no período. A pesquisa é parte de um projeto maior. A primeira etapa, que mapeou os personagens do romance brasileiro, ocupou cerca de dois anos de trabalho. Outras etapas se seguiram - mapeamento dos personagens do romance do período 1965 a 1979, dos personagens do cinema brasileiro, aprofundamento da compreensão da representação das mulheres. Ainda não está tudo completado, mas já são quase quatro anos de pesquisa. Parte dela , a que trata da construção do feminino no romance brasileiro contemporâneo, foi lida pela professora Regina Dalcastagnè na Sorbonne, em Paris.

O que saltou aos olhos dos pesquisadores foi o desprestígio feminino nas obras analisadas. E algumas coisas curiosas. Por exemplo: nos romances escritos por homens, as personagens femininas são quase sempre donas de casa. Mesmo que seus tipos físicos digam o contrário do clichê: elas costumam ser magras, loiras, de cabelos longos.

Se os autores são mulheres - e é importante que se diga que elas não passam de 30% do efetivo de escritores -, há maior riqueza na descrição física das personagens. Elas continuam magras, mas seu corpo não é motivo de grande satisfação. As autoras escurecem e encurtam os cabelos de suas personagens femininas. Os homens, por sua vez, não inventam mulheres doentes com muita freqüência - quem empresta essa nuança a suas criações são as autoras, que também detalham melhor as cenas sexuais, embora nem encostem de leve no tema da homossexualidade.

As mulheres criadas por mulheres fazem sexo com amantes. Os homens tratam o assunto de um jeito mais conservador. E, coitados, ainda são descritos como pais ausentes por suas criadoras, no quesito família. Para os autores, 23,1% de suas mulheres querem mesmo é saber da família. Para as autoras, 37% das personagens femininas sonham com tranqüilidade. Em nenhum dos casos se fala de aborto ou violência doméstica: parece que esses temas não existem nos 258 romances analisados.

Se for direcionado o interesse para as minorias, a coisa fica pior. Há apenas uma narradora negra entre os 1.245 personagens analisados na pesquisa da professora Regina. E ela divide sua história com os outros narradores do romance "Ana em Veneza", de João Silvério Trevisan.

Nesse universo em que o elemento masculino é a regra e o elemento feminino, a diferença, não se pode adivinhar uma certa rarefação artística? "Por mais que ninguém vá admitir isso em público", diz a pesquisadora, "percebe-se que a experiência de vida da mulher ainda não é vista como tão rica, significativa, plural e reveladora da multiplicidade da existência humana quanto a do homem". O fato é que talvez a imaginação dos escritores é que não ande lá muito ativa.

Marçal Aquino, autor de "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios" e elegante exemplo do estilo masculino de escrever, é um franco defensor da palavra feminina. "Acredito que este é um momento singular na história da literatura brasileira, pelo número de mulheres que estão escrevendo e publicando", afirma. "E com muita qualidade. Elas não fazem literatura 'feminina', que isso de rótulo me parece bobagem. Fazem literatura - em alguns casos, alta literatura. Tanto na prosa quanto na poesia." Ivana Arruda Leite, Índigo, Andrea del Fuego e Adriana Lisboa são exemplos de autoras que ele acompanha com atenção e prazer.

Para Aquino, autor visivelmente dedicado ao mundo violento dos homens, o universo feminino é muito mais amplo, complexo e rico. "Então acredito que, de forma até meio fragmentada, ao menos alguns aspectos do universo feminino estão refletidos na produção dessas autoras que admiro", comenta. "São reflexões sobre o que é ser mulher no Brasil no século XXI. Belas reflexões." As autoras citadas por Aquino começaram a aparecer com mais força nos últimos três ou quatro anos. E a maior parte publica por editoras menores: elas não aparecem na pesquisa.

"Longe de mim ser contra as feministas, mas algumas coisas atrasam em vez de adiantar", argumenta a escritora e professora Vilma Arêas, autora de "Trouxa Frouxa" e de "Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos". "Achar que tudo o que mulher escreve é bom porque é mulher só faz infantilizar as autoras", observa. "Militância é bom e eu gosto, mas em arte tem de haver suspensão de militância. Senão, todos os avançados politicamente seriam ótimos artistas e os chamados afro-brasileiros idem. E as mulheres, nem falar."

Quanto ao fato de, aparentemente, os homens não entenderem as mulheres, Vilma é ainda mais categórica: "Em 'Vidas Secas', siá Vitória é muito mais inteligente e interessante do que Fabiano. O mesmo para Capitu, de 'Dom Casmurro'. A melhor personagem de 'Resumo de Ana' (Modesto Carone) é uma mulher." Claro que Graciliano Ramos e Machado de Assis ficaram fora do estudo. Quanto a Carone, analisado pela pesquisa, sua extraordinária personagem é uma exceção.

O fato é que, para além da qualidade literária e da capacidade criativa dos autores contemporâneos, a mulher permanece nas sombras. A universidade, no Brasil, é uma conquista que remonta apenas aos anos 30 do século XIX - bem antes que qualquer mulher botasse os pés nela. "Em 2006, uma aluna minha do curso noturno da Unicamp, operária de uma fábrica em Valinhos [interior de São Paulo], foi demitida depois de ter fundado, com inacreditável esforço pessoal, um curso de português para os menores que trabalhavam na fábrica", conta Vilma. "O curso foi um sucesso, saiu no jornal, mas os patrões justificaram a demissão explicando que ela 'não tinha temperamento de operária' e os meninos estavam ficando 'muito saidinhos'."

Se, de acordo com a pesquisa de Regina Dalcastagné, os autores brasileiros, sejam homens ou mulheres, não têm conseguido capturar a complexidade da alma feminina, a culpa pode ser debitada a uma pálida imaginação? "Creio que é um processo que se realimenta. Escritores criam a partir das suas vivências, mas também, em grande medida, a partir de modelos da tradição literária. Esses modelos estão em falta - e aqueles existentes parecem defasados", diz a professora.

E, se as mulheres que escrevem no Brasil contemporâneo não são gênios do tamanho de Clarice Lispector - uma influência angustiosa, aliás, para quem começa a escrever pensando no elemento feminino -, quem sabe o tempo não possa remediar a situação? "Imitar Clarice é inútil", afirma Vilma Arêas. "Porque ela era muito intuitiva, errava muito, acertava loucamente, e todos os deslizes no final tinham rendimento estético." E conclui: "Essa adoração por ela hoje acaba sendo um desserviço. O texto escapole, ninguém tem uma experiência verdadeira com ele, de antemão adoram tudo, mesmo lendo às vezes errado e seqüestrando a autora da literatura brasileira, mostrando-a sem relação com nada."

Ou seja, está na hora de as autoras brasileiras acharem o seu caminho. E falar delas mesmas, porque, se depender das pesquisas da UnB, os autores contemporâneos estão longe de dar conta do recado.

(jornal Valor Econômico)

quinta-feira, 6 de março de 2008

salve jorge

Surtando com a notícia que li agora no blog do Marcelino Freire, vejam, agendem-se, programa imperdível:

Homenagem a Jorge Amado
SESC Pinheiros
Dia(s) 25/03
Terça, às 20h.
Noite de leituras de trechos de obras do autor baiano com a participação de Alberto da Costa e Silva, Caetano Veloso, Chico Buarque, Mia Couto e Milton Hatoum. Teatro Paulo Autran. Até o limite de 500 lugares. Recomendável para maiores de 7 anos. Retirada dos ingressos a partir de 19 de março, às 14h, pelo sistema INGRESSOSESC. Será permitida a retirada de até dois ingressos por pessoa.
Grátis

Não, não é pegadinha. Caetano, Chico (NÃO ACREDITO!), Mia Couto e Milton Hatoum juntos, homenageando o grande Jorge. Perco qualquer coisa, menos isso. Aiaiai... rs

segunda-feira, 3 de março de 2008

sonhos de litoral

CONTOS INÉDITOS 13

paredes encarnadas num vermelho vivo; portas fechadas e (quase) sussurros compartilhados; cumplicidade de estranhamentos (estremecimentos dos dois; é bom que se diga). de noite; cidades com salitre (sonhos de litoral, fugas intempestivas e um amor cultivado). as duas cidades são assim: litorâneas.

nada foi planejado; o medo (dos dois lados) faz parte; é assim quando se enxerga o crescimento vertiginoso de algo sem nome: apesar da distância dos corpos, as almas estão cada vez mais juntas.

Por Gustavo Rios, escritor, blogueiro e autor do livro "O Amor é uma coisa feia", primeiro livro dele. Como se pode perceber acima, o cara promete.

e as excitações, contraditórias

ESCUDO QUE TEU OLHAR MAIS DOCE DESPEDAÇA

A haste ergue o grito amarelo do cravo
e as coisas recuam de eco na sala.
Ah, se trouxesses a ventarola de tuas ternuras imprecisas,
eu beijaria o luar sonhando como uma criança cega entre teus dedos.
Tira da boca o seio das minhas excitações contraditórias,
joga a cabeça com os cabelos para trás do que sabemos de nós mesmos.
Quero-te eu, mas eu disperso de mim, vulnerável em tua cristã inconsciência.
Pois não é sumir o que eu quero na noite com que envolvi a sala num suspiro.
Não. Talvez se trouxesses a tua boca oferecida numa bandeja de prata,
eu a tomasse como não tomo o cravo vagindo amarelo de dentro das minhas indecisões
e verias que meu olhar diria amo quando não sei se me importo.

Paulo Hecker Filho, falecido em 2005, aos 79 anos, figura singular e múltipla das letras gaúchas: poeta, escritor, tradutor, dramaturgo, jornalista, cronista e crítico literário.

um riso nos chamou, fulgor ou seta

Quando eu parar de me surpreender com coisas belas como este poema abaixo, é porque as coisas vão mal. Muito mal. Mas não, pelo contrário, os últimos dias foram perfeitos, de Tarsila do Amaral a Juno e crisco sour, teve de um tudo, sabe!? Sem contar as pessoas queridas que revi, atualizei os assuntos, matei a saudade, ri junto, afe, foi uma delícia.

Numa praia

Em cada corpo recomeça o mundo,
mas onde então acaba este começo?
Amor não sabe mais o que é profundo,
vem da pele e respira só no verso.

Passamos a toalha pelo corpo,
com o suor a enxugar a morte:
há gotas de água fria no teu rosto,
em ti meus dedos lêem sua sorte.

Um riso nos chamou, fulgor ou seta,
e o dia se refez sem mais promessa.
Nos meus dedos ficou a ferida aberta:
só no teu corpo o mundo recomeça.

Luís Filipe Castro Mendes, poeta português

domingo, 2 de março de 2008

me leve no seu lembrar

CANTIGA PARA NÃO MORRER

Quando você se for embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar