segunda-feira, 28 de maio de 2012

aos tropeços

Líria Porto

fascinados por sonhos intangíveis
avaliações equivocadas
ultrapassamos os limites da lucidez
descuidamo-nos dos laços
dos compromissos
enveredamo-nos por aí
catadores mendigos de nós mesmos



[Estou gostando mais e mais dos versos de Líria, que conheci pela sempre doce Jenifer]

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A questão

Como decidir do desejo?
Algum padrão diz do que
e de quanto vive?


Ele vive do que deseja?
É uma necessidade?
Subsiste no fundo do tempo? 


Faz-se num minuto? Morre 
no outro? Perdura uma existência inteira?
O desejo que não desejamos,


refreá-lo como? Respiramos.
Há interromper-lhe o passo?
O desejo nos ouve? 


É cego? É doido? O desejo vê 
mais que tudo? São os nossos 
os seus olhos? Se os fechamos, 


ele finda? Quem pôs o desejo em nós?
Onde está posto? E onde não?
Penetra o sonho, o trabalho, infiltra 


nos livros, no óbvio, nos óculos, 
na cervical, na segunda-feira e os versos 
não sabem outro tema. 


Há quem não deseje? 
Tudo o que vive deseja? 
Faça-se o exercício: não desejar, 


por um mês, uma semana,
um dia. O desejo fabrica-se
de nenhum aval? Ele não teme?


Não receia o sal à face da razão?
Não teme a dor, decerto, que dela 
parece, por vezes, primo-irmão. 


E perguntamos, perplexos. O desejo 
é uma forma oblíqua de alegria? Brinca 
conosco? Mas, brincarmos com ele, 


ai de nós, é de seus truques 
o mais fatal. Morremos de desejo? 
Com ele removemos pedras? 


Por ele removemos montanhas? 
Pode o desejo mover o não? 
(O não: esta seta o mata? 


Ou esta farpa fomenta o que nele nos ultrapassa 
e que, sem nome nem fim, não desistirá 
senão quando tudo morto em nós?)


Química tão secreta,
não vale a pena qualquer pesquisa, 
uma pluma, este poema.

EUCANAÃ FERRAZ
in Rua do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 
in Rua do mundo. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007. 

quarta-feira, 23 de maio de 2012

das tentativas

"Entrevistadora:
É interessante que o senhor tenha mencionado luz e escuridão, pois os personagens de seus livros com frequência se apegam a ilusões e ao autoengano.


Javier Marías:
As ilusões são importantes. Aquilo que se prevê ou de que se lembra pode ser tão importante quanto o que realmente acontece. Tendemos, em geral, a contar a própria história mencionando apenas as coisas positivas, mas também há uma parte negativa da vida que nos forma: o que não fizemos, aquilo a que renunciamos, o que não ousamos fazer, o que desacreditamos e descartamos, aquilo com que sonhamos, o que esperamos, o que deixamos de lado, o que não chegamos a estudar mas pensamos que estudaríamos, o emprego que não conseguimos, o emprego que não nos deram, ainda que o quiséssemos. As coisas que não somos são parte da gente também. Evitamos falar delas, até para nós mesmos, como se não contassem. Em meus romances, quero que contem."

(As entrevistas da Paris Review Volume 1. Ed. Companhia das Letras, p. 449-450)



Fonte: Blog Vem Cá Luisa 

Canção da Alma Caiada


Aprendi desde criança 
Que é melhor me calar 
E dançar conforme a dança 
Do que jamais ousar


Mas às vezes pressinto 
Que não me enquadro na lei: 
Minto sobre o que sinto 
E esqueço tudo o que sei.


Só comigo ouso lutar, 
Sem me poder vencer: 
Tento afogar no mar 
O fogo em que quero arder.


De dia caio minh'alma 
Só à noite caio em mim 
por isso me falta calma 
e vivo inquieto assim. 


(Antonio Cícero)


Nota: Esta é a primeira letra que Marina musicou, feita por Cícero nos USA, "Canção da Alma Caiada". Maria Bethania chegou a gravar a música em 77, mas foi censurada. Anos depois, Zizi Possi fez nova gravação. Embora Marina já tenha cantado essa canção em shows, nunca gravou-a em disco. 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

e que nunca abdique de ser o que tenta.

Achei lindo e muito apropriado para este momento.

A ORAÇÃO DE CHAGAS:

Que nunca as pernas se cansem de dançar, pois é essa a única maneira de recomeçar.
Que nunca as pernas se cansem de tropeçar, pois é essa a única maneira de caminhar.
Que eu seja o que cai mas nunca descai, que eu seja o que desfruta e nunca o que aguenta – e que nunca abdique de ser o que tenta. 
Que todos os homens aprendam a andar – e que corram e sonhem a cada saltar. 
E que não haja pernas pequenas de mais, e que não haja no mundo dois homens iguais – e que se faça um começo de todos os finais.
E que o passo por dar continue a nascer, e que o caminho se faça pelo mero querer – e que eu ouse o perigo de insistir em viver.
E que nada termine sem o ai do orgasmo, e que nada se dobre sob o peso do pranto – e que um simples abraço me encha de tanto. 
Que nunca as pernas se cansem de tropeçar, pois é essa a única maneira de caminhar.
Que nunca as pernas se cansem de dançar, pois é essa a única maneira de recomeçar.

PEDRO CHAGAS FREITAS



...


Um dia desses, eu separo um tempinho e ponho em dia todos os choros que não tenho tido tempo de chorar.  
Drummond

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Poesia

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.



(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 9 de maio de 2012

e a mente cansada não diz o que sente.

SÃO GONÇALVES, in COMO UM RIO, COMME UN FLEUVE, livro de poesia bilingue (Pastelaria Studios, a publicar em 12 /05/2012)


De tanto que há para escrever a palavra esquiva-se pela esquina do papel, a mente cansada não diz o que sente, esconde-se por detrás de uma nuvem incerta. A boca cala a emoção e os pensamentos vagueiam em contraluz. São silêncios mascarados de sorrisos, é a mente que grita e nada diz.


Por hoje já chega, insiste o pensamento cansado na procura das palavras certas… Mas o espírito aprisionado por sentimentos incertos, grita libertação e o dedos pousados no teclado tocam a sinfonia das palavras que me dita teimosamente o coração… São raros estes momentos, é a palavra sentida em plena emoção. E a noite vai passando neste frenesim que é a passagem do tempo e a alma gritando, a tristeza soltando emoções escondidas, e o tempo que passa, e a palavra que toma forma e os dedos soletrando a raiva escondida em fragmentos de ilusão.


E a frase que nasce, os sons das palavras escritas embalando a esperança renascida, o tempo que pára por um momento nas palmas da minha mão. E as nuvens escuras fugindo para longe formando leitos de espuma branca-libertação.


***
De tant qu'il reste à écrire le mot s’esquive par le coin du papier. L’esprit fatigué ne dit pas ce qu’il ressent, il se cache derrière un nuage incertain. La bouche tait les émotions et les pensées qui errent en contre-jour. Ce sont des silences déguisés en sourires, c’est l’esprit qui crie et ne dit rien.


Maintenant, cela suffit, insiste la pensée, fatiguée par la recherche des mots justes... Mais l'esprit apprivoisé par des sentiments incertains, crie libération et les doigts posés sur le clavier jouent la symphonie des mots que le cœur dicte, obstinément… Ils sont rares ces instants - c’est le mot en plein émoi. Et la nuit s’écoule dans cette frénésie qui est le passage du temps, et l’âme qui hurle la tristesse, et les émotions cachées qui se délient et le temps qui passe et le mot qui prend forme et les doigts épelant la colère cachée dans des fragments d'illusion.


Et la phrase qui naît, les sons des mots écrits berçant l'espoir réincarné: le temps s’arrête un instant dans les paumes de ma main. Et les nuages sombres s’en vont au loin dessinant des lits d’écume blanche - libération.

domingo, 6 de maio de 2012

exatamente assim...

Apaixonite Aguda
Itamar Assumpção


Quando estou longe
Quero ficar perto
Quando estou perto
Quero ficar dentro
Quando estou dentro
Quero ficar mudo
Quando estou mudo
Quero dizer tudo

Canção de amor

Rainer Maria Rilke 


Como hei-de segurar a minha alma
para que não toque na tua? Como hei-de
elevá-la acima de ti, até outras coisas?
Ah, como gostaria de levá-la
até um sítio perdido na escuridão
até um lugar estranho e silencioso
que não se agita, quando o teu coração treme.
Pois o que nos toca, a ti e a mim,
isso nos une, como um arco de violino
que de duas cordas solta uma só nota.
A que instrumento estamos atados?
E que violinista nos tem em suas mãos?

sábado, 5 de maio de 2012

De-lembrares


E no telefone a sua voz chega ainda acordando, tanta manhã que faz. Falamos em projetos, presentes, viagens, tanta coisa. Depois disso, dormi sono demorado, daqueles que a gente pensa e lembra e quer, mas o danado do olho não fecha. A cabeça teima em futurar acontecimentos que ainda não aconteceram, sentimentos e falas, e já eu fico atordoada de vontades, trocando de travesseiros a todo tempo. Imagino casa sem parede, mundo sem distância, tempo sem calendário, e o sono me acorda: deixa de pensar besteira, menina. Tenho dessas coisas desde pequena, de querer andar pelas paredes e sentar no ventilador de teto – ainda nessa época a gravidade não tinha força nenhuma –, mas o doutor me olhava de rabo de olho. Mamãe não gosta de filha dela pensando pensamento mal pensado, mas agora não tenho mais, prometo, passou. Mas por que o sol e a lua não aparecem juntos? Por que não posso ficar acordada? Ah, essas coisas de-lembrar. Só que já faz noite funda e tenho medo de susto, então apago a luz e fecho os olhos bem fechados. Agora não penso mais, palavra minha que fico bem quieta. Quieta feito planta. Quieta feito cômoda. Quieta feito coisa que não barulha.


Alice Sant'Anna, que tem apenas (!!!) 20 e poucos anos e poetisa como poucos no blog pra não ficar na gaveta