segunda-feira, 10 de agosto de 2009

a memória é como o ventre da alma

Encerro também na memória os afectos da minha alma, não da maneira como os sente a própria alma, quando os experimenta, mas de outra muito diferente, segundo o exige a força da memória.
Não é isto para admirar, tratando-se do corpo: porque o espírito é uma coisa e o corpo é outra. Por isso, se recordo, cheio de gozo, as dores passadas do corpo, não é de admirar. Aqui, porém, o espírito é a memória. Efectivamente, quando confiamos a alguém qualquer negócio, para que se lhe grave na memóra, dizemos-lhe: «vê lá, grava-o bem no teu espírito». E quando nos esquecemos, exclamamos: «não o conservei no espírito», ou então: «escapou-se-me do espírito»; portanto, chamamos espírito à própria memória.
Sendo assim, porque será que, ao evocar com alegria as minhas tristezas passadas, a alma contém a alegria e a memória a tristeza, de modo que a minha alma se regozija com a alegria que em si tem e a memória se não entristece com a tristeza que em si possui? Será porque não faz parte da alma? Quem se atreverá a afirmá-lo?

Não há dúvida que a memória é como o ventre da alma. A alegria, porém, e a tristeza são o seu alimento, doce ou amargo. Quando tais emoções se confiam à memória, podem ali encerrar-se depois de terem passado, por assim dizer, para esse estômago; mas não podem ter sabor. É ridículo considerar estas coisas como semelhantes. Contudo, também não são inteiramente dissemelhantes.
Reparai que me apoio na memória, quando afirmo que são quatro as perturbações da alma: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza. Qualquer que seja o raciocínio que possa fazer, dividindo cada uma delas pelas espécies dos seus géneros e definindo-as, aí encontro que dizer e declaro-o depois. Mas não me altero com nenhuma daquelas perturbações, quando as relembro com a memória. Ainda antes de eu as recordar e revolver, já lá estavam. Por isso consegui, mediante a lembrança, arrancá-las dali.
Assim como a comida, graças à digestão, sai do estômago, assim também elas saem do fundo da memória, devido à lembrança. Então, porque é que o que discute, ou aquele que delas se vai recordando, não sente, na boca do pensamento, a doçura da alegria, nem a amargura da tristeza? Porventura nisto é dissemelhante o que não é semelhante em todos os seus aspectos?
Quem em nós falaria voluntariamente da tristeza e do temor, se fôssemos obrigados a entristecer-nos e a temer, sempre que falamos de tristeza ou temor? Contudo, não os traríamos à conversa se não encontrássemos na nossa memória, não só os sons destas palavras, conforme às imagens gravadas em nós pelos sentimentos corporais, mas também a noção desses mesmos sentimentos. As noções não as alcançamos por nenhuma porta da carne, mas foi o espírito que, pela experiência das próprias emoções, as sentiu e confiou à memória; ou então foi a própria memória que as reteve sem que ninguém lhas entregasse.

Santo Agostinho, in 'Confissões'


Interessante este texto. Nunca havia pensado sobre este ponto de vista de Santo Agostinho: conforme o tempo passa, situações, momentos, sentimentos e pessoas do passado vão cada vez mais pertencendo a um espaço da sua vida que não lhe pertence mais. É como se sabidamente guardássemos em uma caixinha os momentos de ontem, principalmente aqueles insuportavelmente felizes e os terrivelmente doloridos. Muita coisa acaba ficando para trás, lá no limbo dos instantes esquecidos, mas as coisas mais fortes vão para este reservatório de lembranças, e jamais serão esquecidas. Mas o mais importante - foi a leitura que fiz do texto - é que eles deixam de doer quando são mencionados. É quando a ferida cicatriza e a gente se percebe bem e curado para tentar de novo. É isso. Gostei. Boa semana pra todo mundo.

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