sábado, 8 de março de 2008

o verão e as mulheres

Talvez tenha acabado o verão. Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol é muito claro. Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas. As cigarras não cantam mais. Talvez tenha acabado o verão.

Estamos tranqüilos. Fizemos este verão com paciência e firmeza, como veteranos fazem a guerra. Estivemos atentos à lua e ao mar; suamos nosso corpo; contemplamos as evoluções de nossas mulheres, pois sabemos quanto é perigoso para elas o verão.

Sim, as mulheres estão sujeitas a uma grande influência do verão; no bojo do mês de janeiro elas sentem o coração lânguido e se espreguiçam de um modo especial; seus olhos brilham devagar, elas começam dizer uma coisa e param no meio, ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho. Seus cabelos tornam-se mais claros e às vezes as olhos também; algumas crescem imperceptivelmente meio centímetro.

Estremecem quando de súbito defrontam um gato; são assaltadas por uma remota vontade de miar; e certamente, quando a tarde cai, ronronam para si mesmas.

Entregam-se a redes; é sabido, ao longo de toda a faixa tropical do globo, que as mulheres não habituadas a rede e que nelas se deitam ao crepúsculo, no estio, são perseguidas por fantasias e algumas imaginam que podem voar de uma nuvem a outra nuvem com facilidade. Sendo baladas, elas se comprazem nesse jogo passivo e às vezes tendem a se deixar raptar, por deleite ou preguiça.

Observei uma dessas pessoas na véspera do solstício, em 20 de dezembro, quando o sol ia atingindo o primeiro ponto do Capricórnio, e a acompanhei até as imediações do Carnaval. Sentia-se que ia acontecer algo, segunda dia da lua cheia de fevereiro; sua boca estava entreaberta: um sinal aos interessados, e ela pôde ser salva.

Se realmente já chegou o outono, embora não o dia 22, me avisem. Sucederam muitas coisas; é tempo de buscar um pouco de recolhimento e pensar em fazer um poema.

Vamos atenuar os acontecimentos, e encarar com mais doçura e confiança as nossas mulheres. As que sobreviveram a este verão.

Março, 1953.

Rubem Braga in "200 Crônicas Escolhidas"

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