quarta-feira, 28 de maio de 2008

cruéis em nome do amor

Fabricio Carpinejar sempre me afaga com textos perfeitos. Lindos e cruéis, pq na maioria das vezes falam a verdade mais crua do sentimento, e desmascaram o que está por trás das palavras e das ações. Eis aqui mais um belíssimo exemplo de texto dele. Cuidado: é contra-indicado para pessoas sensíveis. Pode causar lágrimas indesejadas, e não é esse o objetivo.

MEU QUERIDO AMOR

Nunca escrevi diretamente para você. Sempre havia uma destinatária em seu lugar. Eu abreviava o caminho, não sei se recebeu alguma notícia minha desde a adolescência ou se as cartas nunca passaram pela poça de seu sopro. Hoje coloquei meu blusão verde bordado 38. O prazer da gola coçando a barba me animou – sou movido ao tato. É dia de inverno, próprio para sentar com uma cadeira dobrável no pátio e expor o rosto à enxaqueca do sol. Não me importa que seja obrigado a tomar uma aspirina depois. Dependo de sua claridade inconsolável.

Desculpa, Amor, você não tem nada a ver com o nosso destino. Nós terminamos antes que você termine. É assim. Desistimos enquanto você prossegue. E apenas você, Amor, que irá até o fim, onde deveríamos acompanhá-lo, você vai até a nossa velhice: as mãos concedidas debaixo dos lençóis. Nós ficaremos na meia-idade, os braços pedindo um táxi. Nós o negaremos secretamente, apesar das pontadas violentas e da saudade dolorida. Negaremos inclusive que o conhecemos, que você é nosso encontro. Seus traços serão coincidências, nunca a soma óbvia dos nossos perfis e lápis de cera.

Nossas dúvidas escondem você. Porque é necessário confiar naquilo que ainda não sabemos. E queremos saber tudo antes mesmo de ter vivido. Nosso nervosismo não tem tranqüilidade para aceitá-lo.

Você tem paciência; nós, tempo. Sei que você não se fez sozinho, não posso escrever em seu lugar, você não é o que confio, é o que confio mais o que confia quem eu amo. E quem eu amo não poderá falar por você igualmente. O amor está entre duas conversas, duas ânsias, dois passados. Não é o desejo da direita, nem o da esquerda. É o que está entre os dois. Flutuando.

O amor é se despertencer. É sentir para passar adiante, não é sentir para ficar com aquilo. É não suportar sentir mais sozinho. Eu me desacostumei com a minha solidão.

Pela pressa de ter o amor só nosso, só nosso, somos capazes de destruí-lo com palavras. Não temos nada para odiar naquela pessoa. Estávamos agradecidos pelo espanto provocado pela sua chegada. Irreconhecíveis pela felicidade que nos fazia imaginar em dobro. Na noite anterior, éramos a vontade desesperada de entender. No dia seguinte, nenhuma vontade de compreensão. Não há persistência, há precipitação.

Mentir para uma pessoa não é tão grave quanto mentir para você, Amor. Mas os casais mentem que você foi um engano, um engodo, uma mentira. Chegam a dizer que você não existiu. Você fica perdido entre as defesas e ataques de ateus, céticos, agnósticos, crentes.

Somos fracos e desabafamos o que não acreditamos. Despejamos tanta violência sobre aquele que amamos para provocar. Para desencadear uma reação. Somos cruéis em nome de amor, para não sujar o nosso nome.

Somos imundos, desolados, irascíveis. Por não agüentar alguma coisa não resolvida em nossa vida. Algo aberto, inacabado. Uma fresta nas venezianas e não mais dormimos. Desconfio que nossa curiosidade está toda no ódio. Não toleramos ter que esperar. Se ele ou ela não vem agora é que não me deseja mesmo. Concluímos logo. Feitos perfeitamente para a fúria, incomodados com a brisa.

Procuramos decidir de vez se aquilo presta ou se não presta, se vale ou se não vale. Ansiamos por um veredicto, uma salvação, uma paz. Penso que desejamos a separação para não sofrer mais. Produzimos a separação, é a resposta mais rápida. A resposta mais rápida é vista como a certa. Um alívio para seguir com o trabalho, e mostrar clareza aos amigos.

E os amigos bem-intencionados não vão nos ajudar. O que disserem a respeito do que aconteceu não será suficiente, o amor é um dialeto restrito aos dois que se amam.

Não reparamos no principal, Amor. Não reparamos que quando amamos o tempo não faz a mínima diferença. Amar será sempre recente: será ontem. Anos juntos e a sensação é que foi ontem. Anos separados e a sensação é que foi ontem. Ontem, ontem. Não há anteontem no amor. As lembranças mais longínquas já são corpo.

É uma pena, Amor, que somos mais decididos do que amorosos. Amar é não decidir. Decidir é terminar sempre.

Fabrício Carpinejar

2 comentários:

Edna Moda disse...

Parabéns pelo seu blog que foi mencionado no blog que indica blogs no tema poesia http://ednamoda.blogspot.com/

Juliana Ricci disse...

Caralho!!!!! ops....pode falar palavrão aqui?? Não consegui pensar em outra palavra depois que li o texto. Vixi......