quinta-feira, 24 de abril de 2008

e os sonhos que não chegaram a nascer?

Como todo mundo, continuo estarrecida com a morte da menina Isabella. Contraria tudo que nos ensinaram, é desleal, é impossível aceitar. E numa noite vazia pego o livro Fazes-me falta, de Inês Pedrosa, e abro numa página qualquer que ainda não li. Eis que me deparo com um relato absurdamente atual, de um assassinato de uma criança, no apartamento vizinho ao do narrador da história:

"Ontem o meu vizinho do lado matou a filha de dois anos e, uma vez mais, eu não me apercebi do que se passava. Não soube salvar uma criança que gritava do outro lado da parede - porque tinha o som da televisão demasiado alto. Se não fosse a televisão seria um disco, a rádio, qualquer coisa que enchesse a casa de músicas ou palavras. É a primeira coisa que faço quando entro em casa: ligar o som, qualquer que ele seja. Sou o vizinho ideal para um criminoso. O álibi perfeito.
(...)
Para onde foi a vida futura desta criança? Como crescerão sem ela os amigos que não teve, os amores que não conheceu, os projetos particulares de seu cérebro irrepetível? Onde moram os sonhos que não chegaram a nascer? Perguntas que abandonara depois da guerra, perguntas que nos acodem, debaixo do fogo de todas as guerras, quando assistimos ao vôo picado da morte sobre corpos carregados de vida potencial?
(...)
A juventude desta menina não existiu. O sangue coagulou, o corpo arrefeceu, roxo como mármore, preso nos sonhos antesonhados. Esta menina que ontem a teu lado, chorava pela avó, só agora a descobres, no museu de horrores do telejornal, exposta para o prazer póstumo dos bons sentimentos. Em pequena, ensinaram-me que estes casos trágicos eram a excepção, a incontrolável excepção. Depois fui-me habituando a inscrevê-los na ordem, a imutável ordem.
(...)
Assassinam-se demasiadas crianças todos os dias para que possamos fazer algo por isso. O que se escreve, o que se julga, o que se faz - tudo isso corre numa pista paralela, a pista eficiente dos fazedores de molduras. Na televisão, emolduram a morte da menina a noite inteira - um batalhão de psicólogos, sociólogos, terapeutas experientes para o fazer. Explicam-na, e ficam mais sossegados. (...) No fundo do precipício das explicações, a menina continua morta, violentamente morta, de uma morte que, como o amor-perfeito, jamais parará de acontecer, jamais parará de contagiar o medo dos vivos, a sua solidão, a sua infinita capacidade de matar devagar."

Inês Pedrosa, in Fazes-me falta, pags 149 e 154

Li, gostei e fiquei me perguntando como pode ser tão verdadeiro, tão real. E fiquei pensando ainda que o bom escritor deve ser aquele que consegue escrever de forma bela, mesmo falando de algo tão horrível como o assassinato de uma criança.

4 comentários:

Anônimo disse...

eh, realmente... vc se supera a cada dia...
Muito Bom! Vou ter de comprar o livro... Duro vai ser achar um baratim... eh tão atual... eehhe

Hey, se passar um cara amarrado nuns balõezinhos coloridos ai... naum atire pedras pq eh um padre do Paraná q o pessoal anda procurando... rs

bjssssssssss estremecidos...

disse...

É, menina... infelizmente histórias até piores acontecem sempre. É triste e vergonhoso.

Ah, tá aceita a candidatura à companhia bacana pro mochilão. :)

Anônimo disse...

Querida, Camila.

Nossa que coisa vc abrir o livro bem nessa página. Triste não? Amei o post. De um lado eu ando bem triste com o caso da Isabella, por outro lado indignada, pois tantas outras crianças todos os dias são assinadas e somente à Isabella estão atribuindo tanta importância,não que ela não mereça, só fico chateada ao imaginar quantas outras morrem e sofrem sem que saibamos.

Beijos e boa semana.

P.S.: Apareça. Vamos nos encontrar na quarta-feira? Ou estará ocupada?

Anônimo disse...

nossa!
eu sou fanzaum da MACABÉA...
me apresenta?

Gosto da frase dela: (...) se eu tivesse um pote de creme eu comia(...) em A hora da Estrela... evidente!

bjs saudosos... baladeira!