quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

felicidade: saiba como e use bem.

O romancista e ensaísta francês Pascal Bruckner diz que ser feliz virou uma obrigação, um símbolo de status e uma fonte permanente de angústia. Confira alguns trechos da entrevista, concedida à Revista Época*:

ÉPOCA – Como a felicidade se tornou uma tirania?
Pascal Bruckner – No século XVIII, felicidade já deixara de ser um direito para se tornar um dever. Mas essa inversão de valores só se consolidou no século XX, depois de 1968, quando se fez uma revolução em nome do prazer, da alegria, da voluptuosidade. A partir do momento em que o prazer se torna o principal valor de uma sociedade, quem não o atinge vira um indivíduo fora-da-lei.

ÉPOCA – O problema não é o que se considera felicidade hoje?
Bruckner – O problema é a procura. Todos os que buscam a felicidade ficam mais infelizes, porque não se trata de uma caça ao tesouro ou à pedra filosofal. A busca da felicidade está fadada ao fracasso. É como procurar o príncipe encantado. Acabamos por nos privar dos pequenos prazeres e das pequenas alegrias, e ficamos com uma insatisfação permanente.

ÉPOCA – Confunde-se felicidade e bem-estar?
Bruckner – Dinheiro compra bem-estar, conforto, mas nada compra a felicidade. Nos países em que o Estado falha em suprir as necessidades básicas do cidadão, é compreensível que a felicidade seja vista como a ausência da tristeza. Mas ela não deve ser reduzida a uma definição pela negação. Nos países ricos, em que as pessoas dispõem de certa renda, têm casa e comem normalmente, a felicidade não é compulsória. Prova disso é que na França se consome uma enorme quantidade de antidepressivos.

ÉPOCA – Sofrimento virou doença?
Bruckner – Sempre detestamos o sofrimento, é normal. A novidade é que agora as pessoas não têm mais o direito de sofrer. Então, sofre-se em dobro. Querer que as pessoas se calem sobre a dor física ou psicológica é apenas agravar o mal.

ÉPOCA – Isso aumenta a crença de que ela pode ser conquistada?
Bruckner – Há pessoas que correm a vida inteira atrás dela, e então a felicidade vira uma inquietação permanente. Ou seja, o sujeito já entrou no território da angústia. A felicidade vira uma prisão.

ÉPOCA – E o papel da religião em tudo isso?
Bruckner – O cristianismo coloca a felicidade como o paraíso perdido ou por vir. É a noção da felicidade perfeita, ao pé de Deus. Praticamente todas as religiões falam do sofrimento e nos prometem a felicidade depois desta vida. No catolicismo, o sofrimento é tamanho que o Deus sangra e agoniza. Por outro lado, há cada vez mais religiões que se ocupam da felicidade na Terra, como evangélicos, budistas e hinduístas, por exemplo. Na verdade, nos tornamos todos crentes laicos: tentamos cumprir na Terra o ideal que o cristianismo nos propõe para o céu. Queremos fazer nossa felicidade como os penitentes de outros tempos se flagelavam. Nós nos penitenciamos nas academias de ginástica, no esforço permanente para emagrecer, nos regimes, na obrigação de ter orgasmo.

ÉPOCA – No século XIX, havia o 'mal do século'. Era lindo sofrer. Estamos vivendo isso às avessas?
Bruckner – O 'mal do século' era uma estratégia do individualismo. O burguês era contente e satisfeito, ao passo que o artista exibia sua tristeza para se distinguir da massa. Até a doença se tornou uma forma de singularização. Hoje, a estratégia é a mesma: se distinguir, escapar da miséria comum.

ÉPOCA – Por isso muita gente adota a atitude de ver alegria e perfeição em cada refeição, cada objeto, cada momento?
Bruckner – É a estratégia dos estóicos, de fazer tudo como se fosse a última vez. É uma revalorização da vida cotidiana. É interessante, mas pode ser um mecanismo de autopersuasão, de se convencer da felicidade da própria existência, de evitar ser pego no 'erro'. Essas são pessoas que decidiram imperativamente ser felizes. Isso é muito suspeito, porque todo ser humano tem momentos de tristeza. Tentar esconder isso é se enganar.

ÉPOCA – Os livros de auto-ajuda reforçam que só não é feliz quem não quer?
Bruckner – Esse tipo de literatura sempre existiu. São livros contra as pequenas misérias do cotidiano: como se livrar de uma febre, remover uma mancha. Hoje, no entanto, os temas são mais amplos: promete-se a felicidade. Deepak Chopra, guru das estrelas de Hollywood, faz vários livros sobre o mesmo tema: como ganhar dinheiro, como fazer sucesso. Há sempre um ou dois conselhos que funcionam, mas esse tipo de receita vive muito próximo do charlatanismo.

ÉPOCA – As pessoas felizes são menos interessantes?
Bruckner – Ninguém é feliz ou infeliz o tempo todo. A vida não se divide entre essas duas polaridades. Muito mais importante que a felicidade é a liberdade, a capacidade de enfrentar problemas. A felicidade é um valor secundário, e é bom enfatizar isso para que não se sintam culpadas as pessoas que não chegam a ser felizes.

EPOCA – O que seria a felicidade real, não-idealizada?
Bruckner – Um sentimento sem objeto preestabelecido, algo que muda de acordo com a pessoa, com a época e com a idade. Nós a encontramos em alguns momentos, mas ela é fugidia por natureza, não vem quando a chamamos e às vezes chega quando menos esperamos. Há dois erros básicos na forma como a encaramos atualmente. Um é não reconhecê-la quando acontece ou considerá-la muito banal ou medíocre para acolhê-la. O segundo erro é o desejo de retê-la, como a uma propriedade. Jacques Prévert tem uma frase linda sobre isso: 'Reconheço a felicidade pelo barulho que ela faz ao partir'. A ilusão contemporânea é a da dominação da felicidade. Um triste erro.

* Entrevista editada. Reportagem original de Paula Mageste, enviada pela querida Ju.

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