sábado, 15 de dezembro de 2007

e os dedos da memória, cruéis

VIDA (SEM ESQUECER A MORTE DE CADA DIA)

Dora Ferreira da Silva

Escoam-se
areias na ampulheta
pranto
riso quase sereno.
Um destino ressoa
alada música
Appassionata.


É preciso tempo
o vagar dos crepúsculos
o começo
a promessa
o findar das estações
um olhar calmo sobre a vida
formas
contornam sensações
o céu infinito
explode cósmica
ternura.
Nada indiferente
sob a lua seus enigmas -
naufrágio das coisas
no azul.


Vivos e mortos
perambulam nas estradas
um sorriso nos lábios.
O que dizem
no silêncio
agora pleno
da alma?
Appassionata.


O gesto preserva a
emoção e o brusco
perpassar de folhas mortas.
Gemem pássaros noturnos
fiéis da madrugada
até que o horizonte desperte
em sua luz dourada.


Dedos da memória
afagam e são cruéis
tudo ressurge e se transfigura
no que poderia ser
se a chuva desabasse.
Só os relâmpagos
ao longe
de raios mudos.
A noite se expandia
se expande
ou tudo invadirá
com seus negros andrajos?
Olho sem ver
a paisagem
árvores dobradas pelo vento
ouço uma voz distante
não sei o que diz.
Apenas um manto me aquece
na noite gélida
mas pulsa o coração
da trêmula
Appassionata.


É preciso desdobrar
asas de amor conhecimento
liberar o tato
de todas as coisas
que esperam.
Pois o eco fugiria
das palavras vãs
sem pólen
os pássaros voltariam
aos ninhos de sombra
se teu coração
recuasse
e os cabelos
não soltasses
Appassionata.


A nudez do sono
frêmitos do vento
um perfil vizinho
jamais decifrado
carícias da alma
aquecendo o corpo
o poema lembrado
na neblina do outrora
os lábios unidos
no mais leve dos beijos
a flama e o desejo
a carne fremente
Appassionata.


O tempo findando
e agora tão próximos
corpo e alma
num limiar
agônico.
Silêncio esvaecido
de uma vida inteira
de busca
e o achado se perdendo
na mais fria madrugada
mas o grito irrompendo
tudo resume
Appassionata.


Vida longa
atenta aos sinais
rente aos vestígios de deuses forasteiros
é preciso
ser viva e morta
rolar nos gramados
amar as flores
nada aprisionar
retendo na avareza.
Amar em silêncio
com a maior leveza
sem pedir em troca o amor.
É preciso ter um corpo
é preciso ter alma
Appassionata.

Sobre a autora
Dora Ferreira da Silva é poeta e tradutora. Seu livro de poemas Hídrias recebeu o Prêmio Jabuti em 2005.

ERRATA: Dora faleceu em 07 de abril de 2006 (um dia antes do meu aniversário!), aos 86 anos. Obrigada, amigo SRD, pela correção.

2 comentários:

Luciana Pessanha disse...

Belíssimo poema, Camilinha! Trouxe outro sobre memória.

À MINHA MEMÓRIA


Guardei em minha memória
tudo o que fui ou vivi:
como quem guarda na estante
um livro que nunca leu,
guardei meu eu, nesga por nesga,
fragmento por fragmento,
não deixei um só momento
perdido, ao andar do tempo.

Guardei em minha memória
os amores que não tive,
os amores que não pude
e os que jamais sequer vi,
todos meus sonhos desfeitos
meus ideais por fazer,
minhas chagas por curar,
minha vida por viver.

Guardei em minha memória
meu íntimo ser por completo:
fragmento por fragmento,
nesga por nesga meu eu
com todos os seus tormentos.
Porém, o que mais me entristece,
é que minha alma se esquece,
por vezes, de me esquecer.

(Robertson Frizero Barros)

Ótima semana, querida!
Beijo

Anônimo disse...

morava em sp... lamento informar.

Em 6 de abril faleceu, em São Paulo (capital) Dora Ferreira da Silva (Conchas/SP), tradutora e poeta da Geração 45, três vezes ganhadora do Prêmio Jabuti. Dora traduziu Saint-John Perse, San Juan de la Cruz, Hölderlin, Jung, e sua tradução de Elegias de Duíno, de Rilke, é considerada um dos grandes marcos da tradução em poesia.

Mas foi uma grande lembrança.
Também gostava muito dela...

bjs cah!