ALVO
Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfície
das tuas palavras. Fala de um depois anterior, desse sono
demente na fissura da luz; do violento vôo ou ferida
cíclica, a ausência excedendo-se na pele quando a desoras
perfumas minhas mãos. Estende-se o calor aos lábios,
o verão simula a duração no verso, circula a água, vigorosa,
no fundo do poço até desaparecer na cama muda.
Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digo
os dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dos
destroços. Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-o
num gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro,
os peixes sobem lentos no lago imoderado e a noite volta,
lenta, adormecida. Dou-te o que não tenho – a história
de um rio exultante a explodir na boca em versão romântica,
poema sem trágicos sulcos ou fala completa. E tu, tu dás-me
o que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto.
Ana Marques Gastão
In Nós/Nudos, Gótica, 2004
"Não pense que eu ando atrás só de belas coisas simples. Eu quero qualquer coisa, desconexa, contraditória, insegura, não tem importância, desde que seja sua. As definições redondas e grandiloqüentes, as coisas categóricas e acabadas não me satisfazem, porque eu não sou assim", escreveu Maury Gurgel Valente para Clarice Lispector. Este blog traz excertos do cotidiano, poesias, devaneios sobre relacionamentos, cinema, literatura, música... Belas coisas simples, como eu, você e a vida.
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