sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

e se...?

E se eu deixasse acontecer? Simples, gostoso, diariamente? Teria sido diferente se eu não tivesse apertado a tecla PAUSE naquele momento? Haveria uma continuidade, ou a novela da vida real (digna de Almódovar, vamos combinar) se consumiria e terminaria de qualquer forma? Há quem diga que sim, pela forma abrupta e visceral que começou, o único caminho possível seria o fim. Prematuro e indesejado, mas o fim. Mas há também os mais otimistas, que haviam previsto um final pra lá de feliz, beirando o sublime, repleto de coisas boas, com as pedras que existem em todas as trajetórias e mais algumas que acabamos carregando por bobeira mesmo. Às vezes me pergunto até que ponto e porque saboto a mim mesma e as minhas relações. Que necessidade idiota é essa de terminar relações antes mesmo que elas cresçam e possam mostrar a que vieram? Estou tentando entender o que se passa dentro de mim. Pode ser o medo da intimidade, de ser amada, de ser feliz. Pode ser. O medo é cruel e paralisa. Deve haver alguma estatística feita por estudiosos britânicos que diz que 35% da população mundial termina relacionamentos por medos infantis e desnecessários. Sei que preciso mudar e parar de agir assim. Deus, o universo ou seja lá o que for tem sido generoso e colocado pessoas muito especiais no meu caminho. A dúvida é: até quando? Será que um dia até Ele vai se cansar e dizer: Ok Camila, sua cota acabou. Fica pra próxima. Próxima vida. :-(

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

sobre anjos, ausências e partidas.

Infinitamente Pessoal

Pequenas Epifanias
Caio Fernando Abreu

E O ANJO pálido troca o mel pelo sal.

Começou a amanhecer. Não sei ao certo como soubemos que tinha começado a amanhecer: era tão escuro ali dentro que noite ou dia lá fora não faria a menor diferença. Por algumas frestas, frinchas — não importa—, tivemos certeza de que começara, claramente, a amanhecer. E por condicionamento, talvez, porque sempre com o amanhecer chega a hora de ir embora, começamos a ir embora. Feito vampiros às avessas — necessitados de luz, não de sombra.
Quando o tempo passasse um pouco mais, nos surpreendendo ainda juntos em outra madrugada, minha cabeça repetiria tonta e lúcida "Éramos tão pálidos, e nos queríamos tanto”. Éramos muito pálidos naquela primeira manhã entre as latas de lixo da rua deserta, caminhando em direção ao dia de hoje — mas ainda não nos queríamos com este enorme susto no fundo dos olhos despreparados de querer sem dor.
Lembro que olhando para cima, descobri entre o roxo e o rosa das nuvens um anjo também pálido, magro e de barba por fazer, vestido de negro, com um leve sorriso nos lábios, vertendo uma gota de mel sobre nossas cabeças. Não prestei atenção nele. Me deixava levar, guiado apenas pelo jardim que entrevia pelas frestas dos tijolos, nos muros-palavras erguidos entre nós, com descuido e precisão. Viriam depois, mais muros que os de palavras, muros de silêncio tão espesso que nem mesmo os demorados exercícios de piano, as notas repetidas e os dedos distendidos, conseguiriam derrubar.
Errei pela primeira vez quando me pediu a palavra amor, e eu neguei. Mentindo e blefando no jogo de não conceder poderes excessivos, quando o único jogo acertado seria não jogar: neguei e errei. Todo atento para não errar, errava cada vez mais. Mas durante as ausências, olhando então para cima e abrindo a boca, recebia em cheio na garganta as gotas de mel do jarro de lata que aquele anjo pálido trazia ao ombro. Embora me recusasse a ver que o anjo parecia cada vez mais sombrio. Incapaz de perceber que em seu leve sorriso, bem no canto da boca, começava a surgir uma marca de sarcasmo, feito um tique cruel.
Passaram-se muitos dias. A lua deu mais de uma volta completa no Zodíaco. Ultrapassou Sagitário e caminhou até Áries, completando seu triângulo de fogo e paixão. Bati as mãos contra o muro, procurando brechas. Não havia mais. Espatifei as unhas, gritei por uma resposta qualquer. Nem uma veio de volta. Olhei para fora de mim e não consegui localizar ninguém no meio das vibrações da cidade suja. Olhei para dentro de mim e só havia sangue. Derramado, como nas cirandas.

Queria acordar, mas não era um sonho.

Então localizei outra vez aquele mesmo anjo parado entre nuvens. Estava de branco, agora, mas nenhum sorriso nos severos, em suas mãos havia um jarro de ouro. De dentro dele, chovia um mar de sal sobre a minha cabeça. Por quê?! — eu perguntei. O anjo abriu a boca. E não sei se entendo o que me diz.

CFA - perfeito, like always.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

e os sonhos extraviados... para onde vão?

A Moça do Sonho
Edu Lobo/ Chico Buarque

Súbito me encantou
A moça em contraluz
Arrisquei perguntar: quem és?
Mas fraquejou a voz
Sem jeito eu lhe pegava as mãos
Como quem desatasse um nó
Soprei seu rosto sem pensar
E o rosto se desfez em pó

Por encanto voltou
Cantando a meia voz
Súbito perguntei: quem és?
Mas oscilou a luz
Fugia devagar de mim
E quando a segurei, gemeu
O seu vestido se partiu
E o rosto já não era o seu

Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não
Por ali reinaria meu bem
Com seus risos, seus ais, sua tez
E uma cama onde à noite
Sonhasse comigo
Talvez

Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás
Se eu pudesse encontrar meu amor
Não voltava
Jamais

Melhor que a letra em si, só mesmo ouvir o Edu Lobo cantando, com toda a maestria que ele e outros poucos demonstram.

diquinhas.


Do blog da Fernanda D´Umbra

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

better, much better.

Donde?
Janeiro 20, 2009 by José Saramago

Donde saiu este homem? Não peço que me digam onde nasceu, quem foram os seus pais, que estudos fez, que projecto de vida desenhou para si e para a sua família. Tudo isso mais ou menos o sabemos, tenho aí a sua autobiografia, livro sério e sincero, além de inteligentemente escrito. Quando pergunto donde saiu Barack Obama estou a manifestar a minha perplexidade por este tempo que vivemos, cínico, desesperançado, sombrio, terrível em mil dos seus aspectos, ter gerado uma pessoa (é um homem, podia ser uma mulher) que levanta a voz para falar de valores, de responsabilidade pessoal e colectiva, de respeito pelo trabalho, também pela memória daqueles que nos antecederam na vida. Estes conceitos que alguma vez foram o cimento da melhor convivência humana sofreram por muito tempo o desprezo dos poderosos, esses mesmos que, a partir de hoje (tenham-no por certo), vão vestir à pressa o novo figurino e clamar em todos os tons: “Eu também, eu também.” Barack Obama, no seu discurso, deu-nos razões (as razões) para que não nos deixemos enganar. O mundo pode ser melhor do que isto a que parecemos ter sido condenados. No fundo, o que Obama nos veio dizer é que outro mundo é possível. Muitos de nós já o vinhamos dizendo há muito. Talvez a ocasião seja boa para que tentemos pôr-nos de acordo sobre o modo e a maneira. Para começar.

Publicado em O Caderno de Saramago

Só pra completar: eu torço firmemente para que tio Obama mande tão bem quanto o mundo espera. Imagino o peso dessa expectativa mundial sobre suas ações e estratégias, mas penso também que sua vontade de fazer diferente deva ser tão grande quanto o fardo que carrega. Começou bem, com uma ótima equipe política. Vamos aguardar e desejar dias melhores. Para todos nós.

o meu infinito particular

"Sou o espelho da complexidade na sua forma mais simples;
Sou a intensidade com mil exclamações;
Sou dono do questionamento interminável que lancei ao vento;
Sou pedaço do pequeno mundo lá fora, dentro de um enorme universo à parte;
Sou fiel nas traições e sincero demais nas mentiras;
Sou a pressa com todo o tempo disponível;
Sou a bagunça na qual se encontra qualquer coisa;
Sou a continuação das eternas perguntas e respostas ainda sem conclusão;
Sou o errado que busca acertar e a sorte de acertar sem querer;
Sou triste mascarando alegria, e a alegria enrustida de tristeza;
Sou amigo de quase todos, mas poucos conseguiram me cativar;
Sou altruísta com estranhos e egocêntrico com os mais próximos;
Sou humilde por puro charme, mas vaidoso sem ser pedante;
Sou exagerado na medida certa;
Sou crente, mas também sou cético;
Sou tiro de rosas em canhões, mas disparo mágoas com a própria língua;
Sou tão certo quanto a dúvida e tão duvidoso que já nem sei;
Sou gritos desesperados em silêncio;
Sou interpretado como não queria e invisível quando me mostro por inteiro;
Sou indeciso por pura convicção;
Sou mais do que esperam e bem menos do que precisam;
Sou aquele que voa ainda no chão e o que desfila aéreo pelas ruas;
Sou a rotina inesperada das imprevisíveis aventuras;
Sou tão óbvio quanto à própria contradição".

Marcus Deminco

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

pelos recantos mais profundos...

Escrever, trabalhar, amar. Utilize para a sua necessidade mais ardente do momento - e não é que o ensinamento de Rilke serve para todas as áreas da vida?

“Prezadíssimo Senhor
(...) Ninguém o pode aconselhar ou ajudar – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever? Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder constatar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa sua vida de acordo com esta necessidade”.

Carta de Rainer Maria Rilke a Kappus em 17/02/1903

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

o magro invento de um sonho

Poesia

Não saberei nunca
dizer adeus
Afinal,
só os mortos sabem morrer.

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo,
eu sei
Ainda assim,
escrevo.

Mia Couto

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

sementeira de tulipas

Querido Helano,

Hoje eu comprei sementes de girassol. Há isso de extraordinário no mundo. Quando alguém se sente só ou com saudade de outrem pode comprar sementes de girassol para vê-lo crescer. Pode até fazer uma sementeira de tulipas. Neste caso, é preciso aguar todos os dias, com a ponta dos dedos, deixando cair uma ou duas gotas, apenas. Já as coisas abrutalhadas, máquinas, tratores ou edifícios, deixo aos outros, cuidarem. Também elas precisam de carícias: não vê o homem pendurado nas vidraças com um pano molhado? Não vê a máquina acarinhando a outra com a lixa? Há muitas formas de cuidar. E, felizmente, o delicado e o bruto na esfera do mundo. Se me ocupo da semente é porque escuto o seu silêncio. O silêncio com que ela abraça, tão brandamente, o seu grãozinho de terra.

Rita Apoena

Para ler escutando isso aqui. Nem aprecio o grupo, mas esta música é muito fofa. :)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

coração meu, meu coração

Eu sempre quis um amor como aqueles de cinema, que fazem o coração bater acelerado apenas por saber que alguém, longe ou perto, pensa em você tanto quanto você nele. Quer seu bem e, mais do que tudo, quer passar a vida inteira ao seu lado. Eu pedi, muito e incessantemente, por um amor que me tirasse o chão e me levasse ao céu.

Como o universo costuma ser bem generoso comigo, tenho percebido isso, eu recebi. Primeiro um, depois o outro. Num curto espaço de um ano e meio, experimentei as mais pesadas sensações que um frágil coração, que jamais tinha amado nessa intensidade, poderia suportar. Um coração que sempre quis dar e receber, mas não se preparou para este momento. E então, quando chegou a hora de ser feliz, o coração quis dar demais, além do que havia sido solicitado e acordado entre as partes. Deu tanto, mas tanto, e de uma forma tão intensa, que acabou seco e pequenino, retorcido pelas amarras de algo que nem ele mesmo sabe definir.

O tempo passou, o danado estava quase recuperado e pronto, lá veio o amor dilacerá-lo mais uma vez. Veio com tudo: inteligência, ótimo papo, poesia, música, voz doce, um quê de classe e a sabedoria de quem entende das coisas aliado ao jeito mais brejeiro e caipira do cerrado, um raio de sol nos cabelos e a intensidade que ele sempre desejou colocada à máxima potência. Casa, comida e roupa lavada, emprego, piscina, um amor beirando o impossível e, justamente por isso, digno das melhores telas de cinema ou capas de livro, tudo isso e um pouco mais. Coração teve medo, não soube como agir diante de proposta tão arriscada e tentadora e, ao invés de aproveitar o momento, fugiu como um guri assustado diante de sua primeira grande dificuldade. Ninguém acreditou quando o BEM recusou o DOM que lhe havia sido dado. O que poucos entendem é que este coração precisa, antes de mais nada, se organizar. Preparar-se para receber o amor. Estar pronto para dar também. É o que ele mais quer. E saberá dizer sim quando estiver pronto. Quando chegar a hora.

Meu coração é o mendigo mais faminto da rua mais miserável – já disse o sabido Caio Fernando. O meu não só sente fome, como arde e lembra todos os dias aquelas madrugadas onde não havia distância, nem problema, nem conta de telefone, nem medo. Eram apenas duas almas interligadas por um sentimento único e avassalador. Talvez alguns dos melhores momentos tenham sido passados assim, à distância. O filme da garota do copo d´água não conta, é hours-concours no ranking das cenas inesquecíveis. E apenas duas pessoas neste mundo sabem como estes breves e fugazes instantes foram especiais e intensamente vividos.

Hoje, “meu coração é um anjo de pedra com a asa quebrada”. E neste momento estamos aqui, à beira-mar, fazendo a reabilitação da asa e reunindo forças e energias para mais um ano.

Nada se perdeu. Tudo que foi vivido representa o que sou hoje e me faz ainda mais forte. Mais feliz também, apesar do gosto amargo da impossibilidade. Apesar de amar desse jeito trôpego e confuso, sem saber como nem onde. Mas, mesmo quando as pernas vão vacilantes e o fardo se torna pesado, ainda assim “encho-me dum leite de versos e, sem poder transbordar, encho-me mais e mais”. Por que só sei viver e amar assim. “Como quem desaba sobre o outro como uma chuva forte”.

***

Este texto utilizou frases "entre aspas" de Maiakovski, Olga Savary e claaro, Caio Fernando Abreu.

quase um faquir involuntário

Coisa mais linda esse texto do Caio, que ajudou a criar o texto acima:

Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:

Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.

Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.

Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.

Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.

Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.

Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.

Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se pôs. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.

Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.

Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.

Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar será feliz para sempre.

Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas.

Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: “I’m too pure for you or anyone”. Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.

Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.

Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.

Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega.

Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.

Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.

Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!

Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.

Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração teu.

Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

for me, formidable

"Todo mundo é filho de alguém, irmão de alguém, melhor amigo de alguém, o amor da vida de alguém. E esse é um papel intransferível. Escutamos uma música e sentimos uma necessidade urgente de fazer essa música chegar aos ouvidos de uma pessoa que nos é especial, uma pessoa que, imaginamos, irá gostar da música tanto quanto nós gostamos. Vontade de repartir um prazer, de saber o que o outro achou, de fundir os gostos e, através da afinidade, sacramentar uma amizade ou um amor. Isso é ser importante pra alguém."

(A pessoa mais importante do mundo - Martha Medeiros)

Sendo assim e diante de tudo que teima em permanecer e fazer o coração pulsar, a respiração se intensificar, o cérebro reviver, o corpo arder, o olho brilhar e a mão escrever:

domingo, 4 de janeiro de 2009

e a nossa alma a desatar.

Quero fazer o elogio do amor puro

“Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calcas e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos, e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser possível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-socio-bio-ecologica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas. Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há. Estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que e como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?...

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não e para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.

O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição… Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão e necessária. A ilusão e bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que se quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O CORAÇÃO GUARDA O QUE NOS ESCAPA DAS MÃOS. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, mas mais acompanhado do que quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa... o amor é outra."

Miguel Esteves Cardoso